Primeira-dama do Alto Xingu
Estudante de Letras casa-se com cacique Camaiurá e surpreende antropólogos ao passar a fazer a ponte entre duas culturas
Gisele Teixeira / Jornal do Brasil
PARQUE NACIONAL DO XINGU, MT - Uma bela mineira de olhos azuis, cabelos louros e pele clara desfila com charme e desenvoltura entre os índios da aldeia Camaiurá, localizada na parte sul do Parque Nacional do Xingu (MT). Ela é Andréia Duarte, a quarta esposa do cacique Kotoki, o principal líder da tribo. Os dois viveram uma paixão fulminante assim que se conheceram, em 2000, em Belo Horizonte, e de lá para cá não se separaram mais.
- Ela é muito bonita, não posso negar, é a minha preferida - diz Kotoki, que, junto com ela, optou por viver um grande amor no coração primitivo do Brasil.
O encontro foi uma revolução na vida da estudante de Letras.
- Quando pisei aqui pela primeira vez, em 4 de janeiro de 2001, tive a certeza de que era isso que eu queria para o resto da vida - conta Andréia, que tinha então 21 anos - Ficou claro que meu coração era indígena.
Hoje, além de uma mulher que revela no olhar sua espantosa opção, ela é uma líder na comunidade. Aprendeu a língua da etnia, do tronco Tupi Guarani, e adaptou-se aos hábitos alimentares - peixe assado e beiju - e à dureza do cotidiano, que inclui morar em oca com chão de terra batida e ter uma rede como cama. Acabou ganhando o reconhecimento da aldeia.
A atração dos ''brancos'' pelos índios não é novidade e remonta à chegada dos primeiros colonizadores europeus ao Brasil. Nem por isso deixa de surpreender até hoje os que crêem não ser mais possível viver pelado, pintado de verde, num eterno domingo, como cantou Rita Lee. E foi exatamente isso que aconteceu com o grupo de jornalistas que acompanhou a cerimônia do Quarup - da qual também participou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos - rito indígena de homenagem aos mortos, no último final de semana.
Andréia recebeu a equipe com a desenvoltura de uma primeira-dama, de uma anfitriã.
- Falo aqui em nome de toda a comunidade - foi a primeira coisa que disse, segura, ao grupo.
Deu instruções sobre quem poderia fazer fotos, como entrar nas ocas de forma respeitosa e quais os comportamentos que poderiam soar pouco adequados. Em pé, a seu lado, Kotoki dava aval às afirmações.
- Ela exerce com firmeza sua função de ponte entre as duas civilizações e hoje sua presença é positiva - afirma a antropóloga Carmem Junqueira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Sua integração à aldeia, no entanto, não ocorreu sem turbulências e até hoje o assunto é tabu. Ninguém quer comentar o caso, embora este seja de domínio público.
- Trata-se da vida íntima das pessoas, por isso o silêncio - explica Carmem.
A surpresa causada pela decisão de se integrar à aldeia aconteceu dos dois lados e, com o tempo, a aceitação também.
- Minha mãe foi quem ficou mais chocada. Meu pai disse que sabia que isso ia acontecer. Sempre fui muito independente, nunca pedi nada. Apenas comuniquei - conta Andréia.
Entre os índios, sua chegada foi recebida com reservas. Mas, como é tradicional no temperamento dos mineiros, ela conquistou não só a aldeia mas também as outras mulheres de Kotoki.
- Ela é muito legal - diz Kaminha, uma das quatro esposas, que teve com o cacique sete dos seus 21 filhos - Todos os dias de manhã eu acordo, tomo banho e vou fazer o beiju para os dois.
Na aldeia, a poligamia é admitida e Carmem explica que na sociedade xinguana as mulheres convivem de maneira pacífica. A mais recente tem o direito de ficar com a rede mais próxima do homem, mas a mais antiga é a mais respeitada.
- É quase uma mãezona - compara a antropóloga.
Além de parceira sexual, a mulher é tratada como companheira e importante mantenedora do lar. Segundo Carmem, são as esposas, por exemplo, as responsáveis por colher e ralar a mandioca, que comporá o beiju, e alimentar a família.
- Com elas por perto eles acreditam que o homem tem mais fartura - diz.
Assim, o homem é mais respeitado se conseguir manter a paz doméstica. Adaptada, Andréia começa a influir em uma série de atividades da aldeia, onde vivem hoje 355 pessoas, na região conhecida como Alto Xingu.
Ela ajudou a organizar a Associação Mavutsinin, que leva o nome do deus supremo segundo a tradição dos índios, e a criar o Projeto Escola, que conta hoje com quatro professores e 83 alunos. Além disso, Andréia tem planos de gravar um CD com os sons indígenas e auxiliar na implantação das roças que estão sendo financiadas pela Petrobras, dentro do programa Fome Zero.
Um dos exemplos dos novos ares que levou à aldeia é o computador que ganhou um lugar de honra, no centro da sala de reuniões da tribo.
Ao mesmo tempo, essa mesma mulher que se dispõe a levar tons de modernidade aos Camaiurá, também tem de conviver com ritos tribais seculares, quase inaceitáveis aos não-brancos e de extrema rigidez para o sexo feminino. As adolescentes, por exemplo, ao menstruarem pela primeira vez, entram em reclusão total por cerca de dois anos, quando aprendem a executar tarefas femininas como o preparo dos alimentos e a confecção de artesanato. Durante este tempo, não cortam os cabelos e as franjas crescem por sobre os olhos. Ao final, recebem um novo nome e são consideradas adultas e aptas para o casamento.
Diante de tantas diferenças culturais, o principal questionamento é: quanto pode durar uma união como essa? Esta é a pergunta que se fazem antropólogos e visitantes que passam pela aldeia. Quem vê Andréia e Kaminha abraçadas, em momentos de cumplicidade, crê ainda ser possível a convivência entre dois mundos. Enquanto isso, a musa do cacique segue os ritos da cultura que abraçou e acompanha as índias, todos os dias de manhã, para banhar-se nas águas frias da grande Lagoa de Ipavu.
(C) 2004 Jornal do Brasil
Gisele Teixeira / Jornal do Brasil
PARQUE NACIONAL DO XINGU, MT - Uma bela mineira de olhos azuis, cabelos louros e pele clara desfila com charme e desenvoltura entre os índios da aldeia Camaiurá, localizada na parte sul do Parque Nacional do Xingu (MT). Ela é Andréia Duarte, a quarta esposa do cacique Kotoki, o principal líder da tribo. Os dois viveram uma paixão fulminante assim que se conheceram, em 2000, em Belo Horizonte, e de lá para cá não se separaram mais.
- Ela é muito bonita, não posso negar, é a minha preferida - diz Kotoki, que, junto com ela, optou por viver um grande amor no coração primitivo do Brasil.
O encontro foi uma revolução na vida da estudante de Letras.
- Quando pisei aqui pela primeira vez, em 4 de janeiro de 2001, tive a certeza de que era isso que eu queria para o resto da vida - conta Andréia, que tinha então 21 anos - Ficou claro que meu coração era indígena.
Hoje, além de uma mulher que revela no olhar sua espantosa opção, ela é uma líder na comunidade. Aprendeu a língua da etnia, do tronco Tupi Guarani, e adaptou-se aos hábitos alimentares - peixe assado e beiju - e à dureza do cotidiano, que inclui morar em oca com chão de terra batida e ter uma rede como cama. Acabou ganhando o reconhecimento da aldeia.
A atração dos ''brancos'' pelos índios não é novidade e remonta à chegada dos primeiros colonizadores europeus ao Brasil. Nem por isso deixa de surpreender até hoje os que crêem não ser mais possível viver pelado, pintado de verde, num eterno domingo, como cantou Rita Lee. E foi exatamente isso que aconteceu com o grupo de jornalistas que acompanhou a cerimônia do Quarup - da qual também participou o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos - rito indígena de homenagem aos mortos, no último final de semana.
Andréia recebeu a equipe com a desenvoltura de uma primeira-dama, de uma anfitriã.
- Falo aqui em nome de toda a comunidade - foi a primeira coisa que disse, segura, ao grupo.
Deu instruções sobre quem poderia fazer fotos, como entrar nas ocas de forma respeitosa e quais os comportamentos que poderiam soar pouco adequados. Em pé, a seu lado, Kotoki dava aval às afirmações.
- Ela exerce com firmeza sua função de ponte entre as duas civilizações e hoje sua presença é positiva - afirma a antropóloga Carmem Junqueira, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Sua integração à aldeia, no entanto, não ocorreu sem turbulências e até hoje o assunto é tabu. Ninguém quer comentar o caso, embora este seja de domínio público.
- Trata-se da vida íntima das pessoas, por isso o silêncio - explica Carmem.
A surpresa causada pela decisão de se integrar à aldeia aconteceu dos dois lados e, com o tempo, a aceitação também.
- Minha mãe foi quem ficou mais chocada. Meu pai disse que sabia que isso ia acontecer. Sempre fui muito independente, nunca pedi nada. Apenas comuniquei - conta Andréia.
Entre os índios, sua chegada foi recebida com reservas. Mas, como é tradicional no temperamento dos mineiros, ela conquistou não só a aldeia mas também as outras mulheres de Kotoki.
- Ela é muito legal - diz Kaminha, uma das quatro esposas, que teve com o cacique sete dos seus 21 filhos - Todos os dias de manhã eu acordo, tomo banho e vou fazer o beiju para os dois.
Na aldeia, a poligamia é admitida e Carmem explica que na sociedade xinguana as mulheres convivem de maneira pacífica. A mais recente tem o direito de ficar com a rede mais próxima do homem, mas a mais antiga é a mais respeitada.
- É quase uma mãezona - compara a antropóloga.
Além de parceira sexual, a mulher é tratada como companheira e importante mantenedora do lar. Segundo Carmem, são as esposas, por exemplo, as responsáveis por colher e ralar a mandioca, que comporá o beiju, e alimentar a família.
- Com elas por perto eles acreditam que o homem tem mais fartura - diz.
Assim, o homem é mais respeitado se conseguir manter a paz doméstica. Adaptada, Andréia começa a influir em uma série de atividades da aldeia, onde vivem hoje 355 pessoas, na região conhecida como Alto Xingu.
Ela ajudou a organizar a Associação Mavutsinin, que leva o nome do deus supremo segundo a tradição dos índios, e a criar o Projeto Escola, que conta hoje com quatro professores e 83 alunos. Além disso, Andréia tem planos de gravar um CD com os sons indígenas e auxiliar na implantação das roças que estão sendo financiadas pela Petrobras, dentro do programa Fome Zero.
Um dos exemplos dos novos ares que levou à aldeia é o computador que ganhou um lugar de honra, no centro da sala de reuniões da tribo.
Ao mesmo tempo, essa mesma mulher que se dispõe a levar tons de modernidade aos Camaiurá, também tem de conviver com ritos tribais seculares, quase inaceitáveis aos não-brancos e de extrema rigidez para o sexo feminino. As adolescentes, por exemplo, ao menstruarem pela primeira vez, entram em reclusão total por cerca de dois anos, quando aprendem a executar tarefas femininas como o preparo dos alimentos e a confecção de artesanato. Durante este tempo, não cortam os cabelos e as franjas crescem por sobre os olhos. Ao final, recebem um novo nome e são consideradas adultas e aptas para o casamento.
Diante de tantas diferenças culturais, o principal questionamento é: quanto pode durar uma união como essa? Esta é a pergunta que se fazem antropólogos e visitantes que passam pela aldeia. Quem vê Andréia e Kaminha abraçadas, em momentos de cumplicidade, crê ainda ser possível a convivência entre dois mundos. Enquanto isso, a musa do cacique segue os ritos da cultura que abraçou e acompanha as índias, todos os dias de manhã, para banhar-se nas águas frias da grande Lagoa de Ipavu.
(C) 2004 Jornal do Brasil
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