setembro 08, 2004

Emídio Guerreiro, o homem de muitas lutas

"Quero morrer pobre", partilha com os amigos este seu desejo, Emídio Guerreiro, que, no passado dia 6, cumpriu 105 anos de idade. "A minha cabeça é um vulcão e o corpo já não ajuda", argumenta o professor para justificar que a velhice, mais do que sabedoria, é um naufrágio

ROGÉRIO RODRIGUES

Recentemente, Emídio Guerreiro, depois de lhe morrerem, durante dois séculos, as três mulheres, encontrou dois netos e um bisneto. Quer fazer o testamento, não pela partilha dos dinheiros e bens, mas sobretudo para definir como deve ser o seu funeral, perturbado que ficou com o funeral de José Augusto Seabra com padres e missa do sétimo dia. Já escolheu um testamenteiro em Guimarães e prepara-se para escolher um outro em Lisboa. Quer dirigir-se para a morte com todas as contas ajustadas, ele que considera a velhice não um tempo de sabedoria, mas um naufrágio, face à dependência dos movimentos alheios.



Emídio Guerreiro estava visivelmente emocionado quando começou a falar do futuro perante cerca de duas centenas de convidados e amigos que se deslocaram em Paço dos Duques de Bragança (segunda residência oficial do Presidente da República), em Guimarães, para uma sentida homenagem, diversificada na geografia, na idade e na política.

Após muitas das intervenções, e ainda o almoço não tinha chegado ao fim, o prof. Emídio Guerreiro levantou-se, o vulcão que o corpo não ajuda, frágil, com rosto de peles lassas, apoiado numa bengala, mas irónico, mas quase provocador. E com a voz inconformada mas de velho, débil mas de sotaque minhoto, olhou para a sala e para a sua mesa redonda, onde se sentavam Ferro Rodrigues e mulher, Ramalho Eanes e mulher, o banqueiro Artur Santos Silva, Vasco Lourenço, representante da Associação 25 de Abril, a dra. Marta, ao seu lado esquerdo, uma médica amiga e portuguesa que há mais de 40 anos vive em Paris. Na mesa ao lado, Miguel Veiga contemplava, comovido, aquela força da natureza e do espírito. Olhou e havia brilho no seu respirar antes da palavra. E disse, atravessado por um silêncio bíblico: "Os velhos dizem o que fizeram, os jovens o que fazem, os políticos dizem o que vão fazer".

O rumor da morte. Na sua intervenção mostra-se preocupado, mas esperançado no futuro. Aos 105 anos recorda-se das recomendações da avó e da mãe. Mas são os capitães de Abril a sua referência democrática (e havia alguns na sala): "Os capitães de Abril salvaram a história futura da minha pátria". Mais: "Vós, capitães de Abril fostes para mim o prolongamento da minha vida".

Está lúcido, dolorosamente lúcido, Emídio Guerreiro. A morte não o preocupa, antes a decadência física que precede o passamento. Como disse na semana passada à Pública, ele é um Sísifo que desce a montanha sem a esperança e a obstinação de a subir. Tira toda a razão a Camus que imaginava Sísifo feliz.

Já o seu discurso ia longo, considerando que ainda havia muito tempo na vida para falar sobre política (ou seja: assunto secundário nos dias, meses ou anos que lhe restam, pois a noção de tempo para Emídio Guerreiro assenta mais na decompisoção do corpo, do que na falência do espírito), quando lhe apeteceu, do seu olhar de três séculos, falar do futuro. E disse, como se oráculo fora: "O homem tem à sua frente o grande futuro da desalienação humana". No século XXI, para quem vem do século XIX, "estamos a iniciar o milénio da desalienação humana". E decreta, sábio, ou ungido por tantos anos sofridos: "A civilização em que vivemos está a chegar ao fim".

A hora da homenagem. Foram muitas as mensagens que chegaram até Emídio Guerreiro. Escritas ou proferidas em directo. Guterres e Cavaco enviaram mensagens breves de congratulação. Não sendo admirador de Guterres, Emídio Guerreiro não se inibe de afirmar que é o primeiro-ministro mais inteligente que tivemos até hoje, depois do 25 de Abril.

Quanto a Cavaco Silva tem-lhe respeito, pois ajudou na criação do Centro de Solidariedade Humana que leva o seu nome (o seu de Emídio Guerreiro) em Guimarães e onde o professor habita depois de vender a sua casa em Lisboa, no Jardim Constantino. Mensagens teve também encomiásticas de Jorge Sampaio e Pedro Santana Lopes (mensagem esta que, pelo seu significado político, publicamos na íntegra). A linguagem do primeiro-ministro é, surpreendentemente de esquerda, diria mesmo anti-fascista. O amigo do professor, Paulo Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, tentou provar através do exemplo de um matemático austríaco, que durou até aos 112 anos, que os homens desta área de ciência, onde a probabilidade substitui o acaso, têm uma maior longevidade.

Seguiam-se as homenagens quando foi lembrado por Vasco Lourenço, que os dois sócios honorários, ainda vivos, da Associação 25 de Abril, são Fernando Valle e Emídio Guerreiro, os dois maçons mais antigos do Mundo. Aliás, neste almoço de homenagem foi-lhe concedido o diploma honorário do Grande Oriente Francês. Emídio Guerreiro, diga-se, foi iniciado na Maçonaria em 1928, na loja Revolta, em Coimbra.

Ferro Rodrigues de quem o homenageado foi apoiante, com declaração pública, na última campanha eleitoral, falou de uma pessoa "extraordinária", salientando a sua " verticalidade, cultura, inconformismo e coerência". Terminou, desejando: "Tomáramos nós, todos os portugueses com menos de 50 anos do que ele, que estivéssemos assim lúcidos". Falou depois AntónioArnaut, grão-mestre da Maçonaria.



Poder autárquico. No almoço estiveram presentes os autarcas de Cabeceira de Basto (origens paternas do professor), Braga e Guimarães e um vereador da Câmara do Porto. Mas os discursos continuaram e foi a intervenção de Fernando Amaral, antigo presidente da Assembleia da República pelo PSD, que tocou mais profundo os presentes. Confessando ter abandonado a advocacia há 30 anos, este homem de Lamego confessou a propósito do 25 de Abril: "Aprendi a pensar, aprendi a julgar nos domínios da liberdade". Com um olhar distante, afastado da política, quase estóico, foi aconselhando aos mais novos: "Hoje limito-me ao silêncio. Gosto de apreciar o que os outros dizem".

Ramalho Eanes classificou Emídio Guerreiro como "um intelectual que não se perdeu na reflexão. Ele desafia o futuro. Os nossos maiores devem ser a referência ética da acção".

Já a tarde ia longa quando Luís Góis fez ouvir a sua voz, ainda cristalina, apesar da idade, mais Pedro Carranca, acompanhados por Durval Moreirinhas e Teotónio Xavier. O primeiro acompanhou António Menano e Zeca Afonso, o segundo, tocou com Artur Paredes e o filho, Carlos Paredes.

O repouso do Guerreiro. Emídio Guerreiro estava cansado, mas mesmo assim quis servir de guia aos seus convidados no Centro de Solidariedade Humana que leva o seu nome, pago por si e gerido pela Santa Casa da Miserisórdia a quem ele faz rasgados elogios.

Instalações quase semelhantes à de um hotel, onde o professor vive, depois de se despojar de todos o seus bens imobiliários (falta ainda vender o apartamento de Paris), não têm, contudo, à semelhança de outras casas como esta, crucifixos ou símbolos religiosos. Foram substituídos por bustos de homens que marcaram a evolução da Humanidade nas várias vertentes da sensibilidade e conhecimentos humanos. Assim, podemos ver, espalhados pela grande sala, estatuetas de Darwin, Vitor Hugo, Verdi, Mozart, Luís de Camões, Da Vinci, Descartes, Newton e Einstein.

Era necessário partir para Lisboa. A noite alongava-se. Emídio Guerreiro recolheu ao quarto. Até para o ano, professor.