setembro 15, 2004

Basta acender um charuto



por João Ubaldo Ribeiro

Todo dia a vida nos ensina alguma coisa, embora gente como eu costume demorar a aprender. Por exemplo, há muitos anos me é mostrado como não adianta planejar nada: a vida vem e leva tudo por um caminho diferente. Faz pouco eu estava planejando o que ia escrever hoje: uma nova e cuidadosa defesa da imprensa, porque o negócio está feio para o nosso lado outra vez, estão voltando a botar a culpa de tudo em nós. Recebi até cartas nos responsabilizando pela eleição dos governantes atuais. Foi a imprensa que elegeu o governo e, por conseguinte, é culpada dos erros ou desmandos que porventura ele esteja cometendo. Sensação chata, ser culpado de tudo. Quase nem saio para comprar os jornais, por temer não agüentar a culpa pelos infelizes que sempre encontro dormindo nas calçadas.

Há categorias de pessoas que, lá com suas razões, têm raiva ou ressentimento da imprensa e tomam carona nesses surtos que de vez em quando irrompem. Não vou encher a paciência de ninguém com tentativas de análise, mas uma dessas categorias é, por exemplo, a polícia, em que a imprensa mete muito o malho, mas cujos bons feitos rarissimamente elogia. Ela pode até ter razão, mas forçoso é reconhecer que os bons feitos são incomuns (a não ser os rotineiros, como ajudar a velhinha a atravessar o sinal) e os maus assombrosos. E, quanto a mim pessoalmente, já escrevi em defesa de policiais, fui até homenageado por causa disso. Algo chegou a sair em livro, cujo título não cito só para não dizerem que faço propaganda de livro meu aqui. Portanto, posso provar insuspeição e, mesmo que não pudesse, sei que sou insuspeito.

No Rio de Janeiro, aliás em condição partilhada por várias outras cidades, a polícia é vista, para dizer o mínimo, com desconfiança. Não sou jornalista policial nem estudo o assunto, falo como qualquer residente. Aliás, melhor dizendo, para não parecer que estou querendo atingir a polícia em especial (não estou mesmo, estou querendo atingir é a triste condição de republiqueta atrasada em que nos fixamos cada vez mais solidamente), ninguém tem mais segurança, o clima é geral, foi incorporado às práticas e rotinas urbanas. Não há mais segurança nenhuma e o sujeito pode ser assaltado ou baleado dentro de casa, no ônibus, no hospital, no dentista, na delegacia ou até numa unidade militar. É possível ser posto para fora de casa com a família toda, é possível qualquer coisa.

E temos a manifestação episódica de algo que existe há anos, mas nesta época fica visível. Há muitos candidatos que não podem fazer campanha em locais do Rio cujos governantes, que não são do Estado, mas traficantes ou bandidos “privados”, não permitem. E há ainda locais onde o candidato tem de pedir permissão ao governante de fato. E também se sabe que existem áreas onde quem manda é o dono do pedaço e não entra lá nem autoridade, nem Light, nem Telemar, nem nada sem que esse dono consinta. E, em várias dessas áreas, também se sabe, os serviços públicos são prestados pelos chefes locais, bem como a justiça e outras funções do Estado.

Em outras partes da cidade — e não só favelas — a autoridade estatal é pelo menos suplementarmente exercida pelo que se convencionou chamar “o tráfico”. O tráfico decreta feriados, fecha escolas, proíbe certos tipos de atividade. Li na semana passada que há várias regiões com toque de recolher e cobrança de pedágio para quem voltar para casa depois das 19 horas. A todo instante se sabe de criminosos na polícia, criminosos se identificando como policiais, policiais sendo mortos simplesmente porque se descobre que são policiais. Morre-se mais na violência do Rio e de São Paulo, é o que se diz, do que se morre ou morreu em muitos países em guerra oficial.

Claro, é fácil falar e reconheço que há muita comodidade no papel de crítico dessa situação. Mas, que jeito, está errado, tem que se criticar, mesmo sabendo que as instituições policiais ou de segurança são tão vítimas da doença a que chegou nossa sociedade quanto outras organizações, ou todo o tecido da sociedade. De qualquer maneira, cabe mostrar que, do mesmo jeito que parece não haver um projeto para o país (dizem que há, mas cada um cochicha um diferente, deve ser coisa secretíssima), não há um projeto de segurança no Rio de Janeiro, não há a sensação da existência de nada orgânico, nada que prometa um futuro menos caótico e amedrontador.

E, na semana passada, houve o caso do charuto. Não quero discutir nada, tudo bem, todos os envolvidos têm razão, está certo, porque tal porque vira, bambambam-caixa-de-fósforo, etc. e tal. Mas se soube que, por causa de um freguês que insistia em fumar um charuto em área de um restaurante onde isso era permitido, uma senhora que se sentiu incomodada terminou por chamar a polícia. A senhora em questão é mãe de uma delegada de polícia e acudiram ao mesmo tempo, de acordo com o que foi publicado, seis viaturas policiais, inclusive três de um grupamento especial. Isso numa cidade em que o sujeito telefona para a emergência da polícia comunicando que está sendo assaltado e lhe pedem até o CPF, como aconteceu, segundo também li, durante o assalto de que o escritório de Caetano Veloso foi alvo.

Mas agora conhecemos o macete do charuto. Só é preciso ser parente de um policial (todo mundo pode arranjar pelo menos o parente do amigo de um amigo) e mandar alguém acender um charuto, que a polícia chega logo. Não tem polícia para nada, mas para charuto tem sobrando. Graças a Deus, parei de fumar cigarro e quase nunca fumei charuto. Basta a possibilidade, que cada dia já não me parece tão remota assim, de ser preso ou apanhar (é mole, nem bazuca eu tenho em casa) pela prática de jornalismo explícito.