A festança continua
por João Ubaldo Ribeiro
Em cidades como o Rio, em que não vai haver segundo turno e os dias têm sido úmidos, frios e quase penumbrosos, é compreensível uma certa melancolia, por parte do famoso cidadão comum. Clima de festa acabada. A campanha já não tinha sido grande coisa, com generalizada broxura eleitoral. Mas não deu praia no dia da eleição e não se proibiu a bebida, de maneira que votar virou um programa. Não se dirá um programaço, mas sempre um programa, com uns chopinhos no boteco em frente à seção, azaração cívica etc. E a participação nessa brincadeira gozativa (o brasileiro é um gozador nato, não sei se já lhes falaram isto), que é dizer que quem manda somos nós, quando nunca mandamos em coisa nenhuma e até o sapo barbudo que a maioria de nós achou que ia fazer com que “eles” engolissem está se revelando um fino escargot . E à moda deles, claro. Mas a gente fica ouvindo que estamos numa democracia, que o poder do voto isso e aquilo e coisa e tal e anima a pasmaceira. Às vezes, é melhor do que jogar palitinho, embora nem sempre.
A paulistada está se dando bem melhor, a coisa vai pegar fogo. D. Marta (soube que a palavra “dona”, não entendi por quê, estava sendo usada de forma negativa na campanha; não é o caso aqui, me incluam fora dessa, só estou tratando a prefeita como minha geração trata as senhoras com quem não tem aproximação), que, não faz muito, visitou a Academia e foi muito simpática, parece que, na hora de a onça beber água, a porca torcer o rabo, a vaca tossir ou ocasiões igualmente desafiadoras, não é tão veludosa assim e parte para o combate com feroz belicosidade. Já quanto ao dr. Serra, não sei bem. Nunca tive contato pessoal com ele, mas me dizem que também sabe brigar bem e apresenta uns acessos de mau humor comparáveis aos de uma ariranha dispéptica. Enfim, de fato não sei.
O fato é que a briga se me afigura de foice, como imagino que à maior parte de vocês. E não deixa de ser irônico (eu só disse “não deixa de ser irônico”, não disse mais nada, atenção, advogados e entrelinhistas) que agora o dr. Maluf esteja sendo chamado o “fiel” da balança. Ou seja, não importa o que expliquem, tanto d. Marta quanto dr. Serra estão tendo de cantar os votos do dr. Maluf. Não há jeito. Como estarão realizando essa operação, que se afigura tão delicada aos brasileiros em geral e à maior parte dos paulistas e paulistanos em particular, é que não sabemos. Provavelmente nunca vamos ficar sabendo, como, aliás, não costumamos ficar sabendo de nada mesmo.
Ensinavam nos cursos de ciência política que os sistemas eleitorais de dois turnos tendiam a favorecer os partidos de centro, pois a possibilidade de vir a necessitar, num segundo turno, dos votos de ex-adversários fazia com que os partidos procurassem não extremar-se em demasia. Não vem ao caso ficar fazendo teoria política de cantina (estamos hoje em São Paulo), mas é claro que alguma coisa vão ter que dar ao dr. Maluf, que não sei se é dotado de instintos político-partidários muito filantrópicos. Dar em forma de quê? Ah, como gostaria eu, verdade mesmo, de poder imaginar pelo menos algumas dessas formas. Vocês imaginam? Eu no máximo tenho fantasias meio bobas, pois sei lá que alto empíreo habitam as pessoas do poder? Sei lá que aspirações medram no fundo d’alma do dr. Maluf?
Dirão alguns, acredito que com certeza minoria boba, que não me meta. Não sou paulistano (sou casado com paulista, mas não vale porque ela é de Birigüi — onde, aliás, não sabemos quem ganhou, mas estamos com ele ou ela e não abrimos, temos de aprender alguma coisa na vida), não tenho nada com isso, vá apitar em outra freguesia. Não vou, claro. São Paulo é a maior cidade do nosso Brasil e das maiores do mundo, eu sou brasileiro, outro paulista pode vir a ser meu presidente e não há como deixar de me interessar por São Paulo. E não precisaria de nada *além disso porque, embora também digam o contrário, creio que nem um leso do juízo de minha marca deixa de ver que em São Paulo se prepara a principal atividade do governo nos próximos dois anos, qual seja a reeleição. Esse negócio de reeleição foi realmente a única reforma política que testemunhei na minha existência, as outras eram ou mentirosas, ou parciais, ou efêmeras. Reeleição, não; reeleição é um negócio sério.
Pode haver até quem argumente que ganhar o segundo turno em São Paulo terá tanta importância assim. Aliás, há quem sustente isso. Tenho passado os olhos em peças jornalísticas polissilábicas, além, muito além, da compreensão do vulgo, que dizem que a importância é pouca. Pelo menos é o que eu acho que dizem, pois não é tanto o vocabulário, mas a sintaxe, que é meio ET. Não vou discutir com os especialistas, pois, como se sabe, eles provam qualquer coisa. Mas o que se descortina cá de baixo é que já antecipam a briga da reeleição, já agitam as chaves dos cofrinhos e o presidente, que pode não governar, mas está na cara que nasceu para presidir — trabalhar mesmo, não se tem muita certeza, mas uma boa presidida é com ele mesmo — não quer perder em São Paulo. Talvez até seja forçado a desculpar-se de novo, se se deixar outra feita dominar pela emoção (só poder desfrutar do avião novo tão pouquinho, largar o doce fardo do poder só com quatro aninhos?) e voltar a pedir votos para d. Marta, pois, já viu que se trata de pecado venial cuja absolvição requer apenas um pedido de desculpas sem penitência. Apesar da opinião dos especialistas mencionados, tendo a achar que o presidente está certo. Ele, com menos idade que eu, sem as oportunidades que a vida mole de pequeno-burguês me ofereceu e opinando que ler é como andar de esteira, já se arrumou pelo resto da vida. E eu, aqui ralando provavelmente até um dia estuporar, vou ter cara de negar que o burro sou eu, a começar pelo voto?
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