setembro 15, 2005

KATRINA / Uma versão moderna do terremoto de 1755

"Para alguns [Katrina] é uma versão actualizada do terremoto de 1755 em Lisboa, quando possivelmente umas 60,000 pessoas duvidaram da existencia ou pelo menos da benevolencia de um Deus que quiz ou permitiu essa miséria”, escreveu, poucos dias depois da passagem do furacão, o columnista conservador George F. Will na revista Newsweek.

Will referia-se a pessoas como Mercedez Silva, uma hondurenha que acaba de chegar a Miami depois que em menos de 10 minutos perdeu a sua casa em Nova Orleãns. “Sucedeu tudo tão depressa, mas tão depressa que não sei como é que consegui sobreviver. Se o furacão não tivesse sido tão injusto diria que foi milagre mesmo”, disse Mercedes, olhando para a porta da Ermita de la Caridad, a principal igreja da comunidade exilada cubana que a acolheu.

Mas não é um olhar qualquer. Reflecte uma profunda tristeza mas também uma inocultável dúvida. Pregunto-lhe se “continua” a acreditar em Deus – mais de 90 por cento dos hondurenhos são católicos – e ele responde-me directamente, olhos nos olhos, que “não”.

“Tenho serias dúvidas”, afirma. E conta. Em 1998, Mercedes vivia en Amerillo, uma pequena aldeia a uns 20 minutos de Tegucigalpa, a capital das Honduras, quando chegou o furacão Mitch. Em menos de 12 horas morreram 50 mil pessoas, metade de Tegucigalpa desapareceu do mapa e todas as aldeias à sua volta simplesmente deixaram de existir. Viviendo num dos países mais pobres da América Latina, Mercedez não teve dúvidas em quanto ao seu destino: decidiu emigrar para os Estados Unidos com o marido e a filha. “Perdemos tudo, tudo o que herdamos, tudo o que tinhamos construido. A forma mais rápida de recuperar tudo, era emigrar”, afirma.

Primeiro instalou-se no Texas e mais tarde mudou-se para Nova Orleãns. Diz que nunca gostou muito da cidade, mas arranjou um melhor trabalho, como empregada de limpeza num hotel. O que nunca ninguém lhe disse é que os furacões também costumam aparecer no Luisiana. E furacões tão fortes como o Mitch que a obrigou a deixar o seu país.

E agora surgiu o Katrina. “Perdemos tudo, de novo. Por isso, achas que eu devo continuar a acreditar em Deus?”.

A crise de fé de Mercedez não é unica. É um problema que está a alastrar e tem practicamente todas as religiões nos Estados Unidos preocupadas. Em Miami, os padres católicos dizem que não têm tido muitos problemas, mas que os seus colegas do Mississippi e do Luisiana não tem braços para tantas crises.

“As pessoas ficaram tão desamparadas que até certo ponto estas crises são entendivéis, mais a mais com Katrina que foi um furacão que excedeu todas as expectativas”, conta o padre Jaime Celestino, que exerce na Ermita de la Caridad e por estes días anda a dar conselhos espirituais à Mercedez e a tentar que ela recupere um pouco da sua fé.

Uma fé que também toca à porta dos padres. “À dias preguntaram-me se eu próprio não tinha dúvidas depois que perdemos umas 12 igrejas no Mississippi e no Luisiana”, recorda ao Independente o padre Jackson Williamson, que também foi evacuado. E o que é respondeu? “Eu não perdi a minha fé, pelo contrario acho que tudo isto aconteceu como uma mensagem de Deus para fortalecermos a nossa fé”, afirmou.

No entanto, admite, nem todos têm a sua fortaleza religiosa. “Muita gente pregunta-me se realmente Deus existe. Eu explico que Deus existe dentro de cada um de nós. Mas também não trato de ser mais profundo. Eu acho que estamos num momento em que é preciso lidar primeiro com as consecuencias psicológicas deste desastre e uma vez enfrentado esse problema acredito que a fé regressará de modo natural”, afirmou Williamson.

“Pregunto-me como um cristão tipico pode reconciliar a sua fé num Deus todo poderoso e bom com as imagens de devastação que nos chegam do Luisiana e o Mississippi. Onde estava o Deus deles? Esse Deus omnipotente, suspeitosamente ausente quando os diques rebentaram”, perguntou Annie Laurie Gaylor, vicepresidente da Freedom from Religion Foundation.

Katrina foi um furacão que desde o inicio teve uma leitura mistica. Um jornalista acabado de chegar de Nova Orelãns recordava a O Independente que no meio da destruição total do jardim da Igreja de São Luis, na Royal Street sobreviveu uma estátua de pedra de Jesus Cristo, mas ficou com dois dedos partidos, o miminho e o indice. Se bem que nas 12 horas que antecederam a chegada a terra o furacão apontava directamente para Nova Orleñas, nas últimas duas horas desviou-se para a direita e fez impacte em Biloxi. Há quem diga que os dedos que faltam na estátua estavam a apontar na direcção em que o Katrina se desviou.

Segundo David S. Dockery, o presidente da Union University de Jackson, no estado do Tennessee em momentos como este as pessoas têm uma tendencia natural em virarem-se para Deus, seja a favor ou em contra. “Em momentos como este, muitas respostas parecem ôcas, estreitas e superficiais. A unica resposta que não soa assim é a que Deus dá. Em vez de razões Deus ofrece-se a si próprio, de certo modo no meio de tanta desgraça esta resposta é o conforto de Deus sobre todos nós”, afirmou.

Mas também há quem tenha leituras menos místicas para a passagem de Katrina por Nova Orleñas apesar de tambem encontrarem as explicações que procuram em Deus. Gente como Michael Marcavage para quem Katrina se abateu sobre a cidade porque a cidade é a moradia do pecado.

“A perda de vidas humanas é lamentável, muito lamentável, mas a cidade foi destruida por um acto de Deus”, disse Marcavage, director de Repent America, um website de Filadélfia em cujas páginas se critica as paradas do Orgulho Gay, as festas do Mardi Grass e todo o tipo de expressões de desinibimento. “Nova Orleãns era uma cidade que tinha as portas abertas à celebração pública do pecado”, explicou.

Mercedes não está de acordo. Apesar de que nunca gostou muito de Nova Oreleãns, acha que a cidade é “normal”. “As pessoas lá divertem-se muito, mas também vão muito à missa”, afirma.

E agora, acredita, possivelmente vão ir mais. Mas ela não. “Eu já passei por isto duas vezes. Não vou passar uma terceira. A mi que Dios me perdone, pero tengo ganas de mandarlo al carajo y a su maldito huracán”, acrescentou.
RUI FERREIRA, em Miami
O Independente