julho 15, 2004

Caetano Veloso atordoa escritor angolano José Eduardo Agualusa com elogios em Paraty

PARATY - O público que lotou a Tenda dos Autores na última mesa de quinta-feira na Flip assistiu ao início de uma paixão literária. Caetano Veloso gastou quase 30 minutos do encontro de duas horas apenas elogiando o escritor angolano Jose Eduardo Agualusa, a quem acabara de conhecer, e seu livro "O ano em que Zumbi tomou o Rio". "Fiquei muito excitado, e indignado pelo livro não ter causado furor no Brasil", disse o cantor, contando que conheceu o romance através de uma editora italiana que lhe encomendou um prefácio. "Mas fiquei tão entusiasmado que nem consegui escrever", disse. "Fiquei até um pouco chato, toda hora falando do livro e lendo trechos para amigos". O livro foi lançado há pouco no Brasil pela editora Gryphus.

Agualusa

A paixão era correspondida. "Foi uma revolução quando comecei a ouvir Caetano", disse o escritor, que lança na Flip "O vendedor de passados" (Ed. Gryphus), história de um homem que vende genealogias aos novos ricos angolanos que preferem esquecer suas origens e inventar um novo passado. Mediador da mesa, o cineasta Cacá Diegues disse que o livro "vira de cabeça para baixo o conceito da busca da identidade. Não se trata da busca da identidade, mas de pessoas que querem mudá-la".

Mas o que parecia, a princípio, ser apenas uma troca de elogios, acabou se transformando num debate bem-humorado sobre a questão racial no mundo, com frases como "na Nigéria, o Gil é yellow", dita por Caetano, e "os angolanos são todos otimistas, os pessimistas já se suicidaram todos", de Agualusa.

Sobre os comentários de Caetano a respeito de "Zumbi", Agualusa, modestamente, respondeu: "Ainda estou meio atordoado com a fala de Caetano. Uma das poucas originalidades que vejo no livro é a possibilidade de surgir um Zumbi ou um Che Guevara nas favelas capaz de transformar o atual conflito num conflito político de base racial". No seu romance, Agualusa conta a história de um traficante que decide politizar a criminalidade organizada em torno do tráfico de drogas, com o apoio de angolanos que se envolveram diretamente na guerra civil em seu país. "O Brasil tem que resolver esta guerra. É essencial devolver um passado para a imensa massa de afro-brasileiros, para que ela possa resgatar a África do pensamento, do cinema, da literatura, e sobretudo da música, e não a dos horrores, que nos é transmitida pela TV", comentou Agualusa.

Caetano

Ainda sobre seu livro ambientado no Rio, o escritor abriu uma polêmica sobre a diferença entre as novas literaturas portuguesa e brasileira. "Portugal vive um momento excepcional com o surgimento de muitos jovens escritores. O problema é que são todos muito sombrios e pessimistas, me lembram os jovens escritores paulistas", provocou. "Já os baianos têm uma alegria africana". Apesar disso, nem Agualusa, nem Caetano, conseguiram citar um escritor jovem que considerassem otimista. "Tem o João Ubaldo Ribeiro...", arriscou Agualusa. Caetano concordou: "Eu tinha pensado nele. Mas vão dizer que ele não é tão jovem assim. Ele é da minha geração". A pergunta continuou sem resposta.

No fim do debate, Caetano e Agualusa discutiram as cotas raciais e concordaram que, por princípio, elas não seriam a melhor solução para a desigualdade racial. Mas ambos também admitem que a falta de oportunidades para os descendentes de africanos no Brasil exige uma medida emergencial. "Acho uma estupidez separar as pessoas por raça. Mas algo precisa ser feito", disse Caetano. O cantor fez questão de encerrar a noite com mais uma série de elogios apaixonados ao romance "O ano em que Zumbi tomou o Rio". "Um romance destes tem que ser lido por todos os brasileiros que sabem ler."

Renato Fagundes, Simone Ruiz e Nani Rubin - O Globo