julho 21, 2004

Publicado diário do oficial que salvou o pianista

BERLIM. O encontro entre um oficial nazista e um fugitivo de gueto, num dia gelado de novembro de 1944, inspirou Roman Polanski a dirigir “O pianista”, filme com o qual ele ganhou o Oscar de direção e a Palma de Ouro, em Cannes. O fugitivo era Wladyslaw Szpilman, pianista famoso nos anos 30, que vivera os últimos anos no gueto e que, após ter conseguido escapar de um transporte mortal para Treblinka, escondera-se num sótão na área de Varsóvia controlada pelo exército de Hitler. Sobre o oficial nazista, chamado Wilhelm Hosenfeld (Wilm), até recentemente eram conhecidos apenas os detalhes divulgados no filme de Polanski. Agora, quase 60 anos depois do fim da Segunda Guerra, com a publicação da íntegra do diário e das cartas, finalmente é decifrado o enigma do nazista convicto que optou pela Humanidade. O volume de pouco mais de mil páginas, lançado pela editora Deutsche Verlagsanstalt (DVA), mostra como, mesmo na pele de carrasco, era possível ser sensível e humanista. A declaração “Ich versuche jeden zu retten, der zu retten ist” (“Eu procuro salvar qualquer um que pode ser salvo”) revela como, em muitos casos, uma ação mínima, como doar pão, geléia e cobertor, podia salvar vidas. Hosenfeld, que lutara na Primeira Guerra e ficara revoltado com o Tratado de Versailles — que resultou em grande perda territorial para a Alemanha e em elevadas indenizações — foi um entusiasmado de primeira hora pelo partido nazista. Ele lutou na guerra logo no primeiro ano (1939). No dia em que viu, porém, uma criança polonesa ser executada por ter roubado um pouco de feno —- confiscado de seus pais — mudou de posição. “Envergonhei-me de fazer parte dos culpados por uma tragédia tão grande, sem poder auxiliar as vítimas”, escreveu à esposa Anneliese, aos dois filhos e às três filhas. O oficial nazista aprendeu polonês e passou a esconder fugitivos e a falsificar documentos, procurando salvar judeus, poloneses ou alemães comunistas arrumando-lhes nomes falsos. Segundo Helmut, seu filho mais velho, uma de cada duas cartas do pai teria significado a sua condenação à morte, caso tivessem sido pegas pela censura. — Foi uma sorte incrível ele ter sobrevivido apesar de tudo o que escreveu —- disse Helmut, no lançamento do livro, ao qual também compareceram os seus quatro irmãos. Segundo Thomas Vogel, do Instituto de Pesquisa Militar de Potsdam, Hosenfeld fez apenas o que hoje seria o normal: ajudar pessoas em apuros.




Mas, durante a ditadura nazista, ele foi uma exceção. Grande parte da população colaborava com o regime. E mesmo as pessoas críticas temiam arriscar suas vidas para ajudar as vítimas: uma descoberta significaria pena de morte. Em julho de 1942, Hosenfeld escreveu que estava muito preocupado, pois depois de tanta barbaridade nenhum alemão teria a coragem de se identificar no estrangeiro como germânico. —- Pode um alemão ainda mostrar-se ao mundo? É para isso que morrem nossos soldados na frente de batalha? A História não conhece nada igual. Talvez os arcaicos tenham praticado o canibalismo. Mas nós, que conduzimos a cruzada contra o bolchevismo, como podemos abater homens, mulheres e crianças em pleno século XX? Seremos normais? A culpa é tão grande que nos faz afundar no chão de vergonha. Será que o demônio adotou a forma de gente? Só em 1998, 46 anos após a morte de Hosenfeld num campo de trabalhos forçados na Rússia, Szpilman revelou os detalhes mostrados no filme de Polanski: “Aqui há um piano, um piano de cauda. Toque alguma coisa”, disse Hosenfeld ao encontrar o judeu, que procurava latas de conserva numa casa abandonada. Szpilman tocou Noturno em dó sustenido bemol, de Chopin. Apesar dos dedos esquálidos, destreinados e danificados pelo frio, a música causou em Hosenfeld um efeito de choque: como uma pessoa faminta, suja e congelada poderia produzir algo tão belo? A partir desse momento, ele passou a fornecer alimentos e a visitar regularmente o pianista. A última visita foi no dia 15 de dezembro de 1944, quando anunciou que não viria mais, já que os russos estavam próximos. Ele foi preso pelos russos e, apesar das tentativas desesperadas da família e das pessoas que tiveram suas vidas salvas por ele, Stalin não abrandou a pena do prisioneiro alemão, condenando-o a 25 anos de trabalhos forçados. Wilm Hosenfeld morreu em 1952, aos 57 anos de idade. [O Globo]