RITA / Os irredutiveis de Key West
E depois de Katrina veio Rita, e como com o primeiro apanharam todos um valente susto, desataram a fugir. Em menos de 24 horas, mais de 90 por cento dos habitantes de Key West – são uns 100 mil em total – lançaram-se à unica estrada que liga a ilha com terra firme deixando atrás um grupo de irredutiveis que jurou, pelo menos até à última gota de cerveja, que de ali nenhum furacão os arrancava.
“Isto é apenas um brisinha, são todos uns cagarolas e foram-se embora”, disse Michael Webston, com um copo de cerveja na mão, completamente molhado, no meio da rua Duval – coração da cidade mais ao sul dos Estados Unidos – em frente do Sloppy’s Joe, o bar preferido de Ernest Hemingway nos anos 30, antes de emigrar mais a sul, para Cuba.
Michael é um dos “irresponsáveis”, como lhes chama o presidente da Câmara de Key West, Jim Weekley, que lançou à rua todos os policias que conseguiu, com ordens estrictas de os obrigar a recolherem a suas casas.
Mas se Key West é uma cidade de tradições, como a festa anual dos sócias de Hemingway ou o melhor bolo de limão de todo o sul dos Estados Unidos, outra menos conhecida é a dos irredutiveis que enfrentam todos os furacões.
(Fotos Rui Ferreira)
Com as ordens de recolher ou evaquação obrigatórias, supõem-se que ninguém fique para trás, porque Key West e as ilhas que a rodeiam, são extremamente frágeis. Com a forma de um quadrado de 2 kilómetros por tres, as casas são quase todas de madeira, rodeadas de milhares de árvores e centenas de postes de electricidade, o mais comum é que quando um furacão passa, fica tudo no chão. Por isso as autoridades insistem sempre em que toda a gente deve abandonar a ilha.
No entanto, há sempre os que ficam. E com o passar dos tempos, em relação a esses ergueu-se um muro de tolerancia que leva os policias a não prestar-lhes muita atenção e deixarem-nos em paz.
Os que ficam dividem-se em varios grupos: são os sem abrigo ou os solitários, os brincalhões ou os adeptos de emoções fortes. Mas todos tem uma coisa em comum: quando os ventos aumentam e se viram insuportáveis, recolhem aos bares mais próximos e por ali se deixam estar até que a tempestade passe.
Na noite de terça para quarta-feira havia um bom grupo no “Papagaio Zarolho”, um pequeno bar todo pintado de amarelo, construido de madeira – dizem que de velhos barcos de piratas, mas não foi possivel confirmar – encaixado à volta de quatro ou cinco grandes árvores, numa rua perpendicular à costa norte da ilha.
“São sempre os mesmos. Começam a aparecer a pouco e pouco, vão-se sentando nos cantos, parecem que já têm as suas mesas preferidas, eu já os conheço a todos, e começam a beber, a cantar, às vezes zangam-se, mas não há problemas. Somos uma familia, uma especie de confradia”, disse Dolores Windmill, uma velha californiana, que chegou a Key West há 11 anos e aqui asentou arraiais. Dizem que atrás de um amor impossivel, mas também não foi possivel confirmá-lo. Ela fechou-se em copas.
Entre canções, o fumo impenetrável de centenas de cigarros fumados pausadamente, o grupo de irredutiveis vai passando a tempestade. Esta noite há campeonato de caricas. Parece que as caricas são um hábito mundial neste tipo de mundo, e é ve-los de barriga no chão, homens e mulheres, gordos e gordinhas, de peles curtidas pelo Sol do Golfo do México, a gritarem como crianças cada vez que uma das chapinhas se desliza suavemente pelo chão de madeira pulida por anos de uso. “Batota, batota, isso saiu do risco”, grita alguém. Nisso ouve-se o estrondo de uma árvore que caiu lá fora. Mas ninguém faz caso. O furacão Rita ainda vai pelo principio e faltam horas para que tudo termine.
É uma noite interessante, porque é também uma espécie de homenagem à cultura da bebida. Os donos do “Papagaio Zarolho”, tratam de ter do bom e do melhor para que o pessoal não se queixe. Desde a imbebível Budweiser até à Guiness. Passando por toneladas de gelo, porque o facto de que a luz seja cortada é apenas um pequeno pormenor, subsanado rapidamente com o gelo e muitas lanternas, e a condição básica para que o bom humor seja mantido é que a cerveja esteja sempre gelada. O resto é paisagem.
Um dos parroquianos é o Pai Natal. Não diz o seu nome, apenas se identifica como o Pai Natal. De barba branca, aparenta à volta de 60 anos, tem um barrete vermelho e fala pausadamente sobre as suas aventuras em furacões anteriores. “Já perdi a conta, tou aqui há 23 anos”, afirma. Não diz de onde veio e porque decidiu ficar pela cidade. Vive de ser um dos personagens mais famosos de Key West onde normalmente há mais turistas que habitantes. Mas é um contador de histórias.
“Um dia, depois da passagem dum furacão apareceu um iate no meio da rua Duval. Foi prá aí há uns 15 anos. Apareceram uns tipos com um camião, puseram aquilo lá em cima e foram embora. O problema é que estava toda a gente bébeda e ninguém preguntou nada e ninguém os conhecia”. Resultado: o iate foi roubado, literalmente, nas barbas do Pai Natal.
De manhã, quando os ventos foram embora, começam a sair a pouco e pouco da toca, amparados uns aos outros, com uma onda de bom-humor contagiante e a experiencia de mais um furacão, passado no melhor refúgio de todos, um dos 3 bares da cidade que enfrentam os furacões com as portas abertas.
E há medida que o sol foi subindo no céu e enquanto esperam pelo regresso dos que optaram pela fuga, continuam a festejar nas ruas. E aparece todo o tipo de personagens. Desde um “guerreiro” viking numa lambreta até uma troupe de teatro amador que quase faz um stripe-tease em frente das cámaras de televisão.
Ou isto não fosse Key West, uma ilha que nos anos 70 proclamou a separação dos Estados Unidos, instituiu bandeira própria, nomeou governo, criou um exército de voluntários, imprimiu passaportes e estava a ponto de lançar uma moeda nova – a Concha – quando apareceram os camiões da Guarda Nacional enviados pelo governador da Florida e ao cabo de “intensas” negociações, acabaram todos no Sloppy’s Joe a celebrar a “capitulação” separatista diante de uma boa cerveja. O presidente da Câmara deixou de ser “presidente” da República da Concha, mas a bandeira, de côr azul marinho com um búzio desenhado a branco, continua a ser um dos souvenires mais cotizados da cidade.
“Isto é apenas um brisinha, são todos uns cagarolas e foram-se embora”, disse Michael Webston, com um copo de cerveja na mão, completamente molhado, no meio da rua Duval – coração da cidade mais ao sul dos Estados Unidos – em frente do Sloppy’s Joe, o bar preferido de Ernest Hemingway nos anos 30, antes de emigrar mais a sul, para Cuba.
Michael é um dos “irresponsáveis”, como lhes chama o presidente da Câmara de Key West, Jim Weekley, que lançou à rua todos os policias que conseguiu, com ordens estrictas de os obrigar a recolherem a suas casas.
Mas se Key West é uma cidade de tradições, como a festa anual dos sócias de Hemingway ou o melhor bolo de limão de todo o sul dos Estados Unidos, outra menos conhecida é a dos irredutiveis que enfrentam todos os furacões.
(Fotos Rui Ferreira)
Com as ordens de recolher ou evaquação obrigatórias, supõem-se que ninguém fique para trás, porque Key West e as ilhas que a rodeiam, são extremamente frágeis. Com a forma de um quadrado de 2 kilómetros por tres, as casas são quase todas de madeira, rodeadas de milhares de árvores e centenas de postes de electricidade, o mais comum é que quando um furacão passa, fica tudo no chão. Por isso as autoridades insistem sempre em que toda a gente deve abandonar a ilha.
No entanto, há sempre os que ficam. E com o passar dos tempos, em relação a esses ergueu-se um muro de tolerancia que leva os policias a não prestar-lhes muita atenção e deixarem-nos em paz.
Os que ficam dividem-se em varios grupos: são os sem abrigo ou os solitários, os brincalhões ou os adeptos de emoções fortes. Mas todos tem uma coisa em comum: quando os ventos aumentam e se viram insuportáveis, recolhem aos bares mais próximos e por ali se deixam estar até que a tempestade passe.
Na noite de terça para quarta-feira havia um bom grupo no “Papagaio Zarolho”, um pequeno bar todo pintado de amarelo, construido de madeira – dizem que de velhos barcos de piratas, mas não foi possivel confirmar – encaixado à volta de quatro ou cinco grandes árvores, numa rua perpendicular à costa norte da ilha.
“São sempre os mesmos. Começam a aparecer a pouco e pouco, vão-se sentando nos cantos, parecem que já têm as suas mesas preferidas, eu já os conheço a todos, e começam a beber, a cantar, às vezes zangam-se, mas não há problemas. Somos uma familia, uma especie de confradia”, disse Dolores Windmill, uma velha californiana, que chegou a Key West há 11 anos e aqui asentou arraiais. Dizem que atrás de um amor impossivel, mas também não foi possivel confirmá-lo. Ela fechou-se em copas.
Entre canções, o fumo impenetrável de centenas de cigarros fumados pausadamente, o grupo de irredutiveis vai passando a tempestade. Esta noite há campeonato de caricas. Parece que as caricas são um hábito mundial neste tipo de mundo, e é ve-los de barriga no chão, homens e mulheres, gordos e gordinhas, de peles curtidas pelo Sol do Golfo do México, a gritarem como crianças cada vez que uma das chapinhas se desliza suavemente pelo chão de madeira pulida por anos de uso. “Batota, batota, isso saiu do risco”, grita alguém. Nisso ouve-se o estrondo de uma árvore que caiu lá fora. Mas ninguém faz caso. O furacão Rita ainda vai pelo principio e faltam horas para que tudo termine.
É uma noite interessante, porque é também uma espécie de homenagem à cultura da bebida. Os donos do “Papagaio Zarolho”, tratam de ter do bom e do melhor para que o pessoal não se queixe. Desde a imbebível Budweiser até à Guiness. Passando por toneladas de gelo, porque o facto de que a luz seja cortada é apenas um pequeno pormenor, subsanado rapidamente com o gelo e muitas lanternas, e a condição básica para que o bom humor seja mantido é que a cerveja esteja sempre gelada. O resto é paisagem.
Um dos parroquianos é o Pai Natal. Não diz o seu nome, apenas se identifica como o Pai Natal. De barba branca, aparenta à volta de 60 anos, tem um barrete vermelho e fala pausadamente sobre as suas aventuras em furacões anteriores. “Já perdi a conta, tou aqui há 23 anos”, afirma. Não diz de onde veio e porque decidiu ficar pela cidade. Vive de ser um dos personagens mais famosos de Key West onde normalmente há mais turistas que habitantes. Mas é um contador de histórias.
“Um dia, depois da passagem dum furacão apareceu um iate no meio da rua Duval. Foi prá aí há uns 15 anos. Apareceram uns tipos com um camião, puseram aquilo lá em cima e foram embora. O problema é que estava toda a gente bébeda e ninguém preguntou nada e ninguém os conhecia”. Resultado: o iate foi roubado, literalmente, nas barbas do Pai Natal.
De manhã, quando os ventos foram embora, começam a sair a pouco e pouco da toca, amparados uns aos outros, com uma onda de bom-humor contagiante e a experiencia de mais um furacão, passado no melhor refúgio de todos, um dos 3 bares da cidade que enfrentam os furacões com as portas abertas.
E há medida que o sol foi subindo no céu e enquanto esperam pelo regresso dos que optaram pela fuga, continuam a festejar nas ruas. E aparece todo o tipo de personagens. Desde um “guerreiro” viking numa lambreta até uma troupe de teatro amador que quase faz um stripe-tease em frente das cámaras de televisão.
Ou isto não fosse Key West, uma ilha que nos anos 70 proclamou a separação dos Estados Unidos, instituiu bandeira própria, nomeou governo, criou um exército de voluntários, imprimiu passaportes e estava a ponto de lançar uma moeda nova – a Concha – quando apareceram os camiões da Guarda Nacional enviados pelo governador da Florida e ao cabo de “intensas” negociações, acabaram todos no Sloppy’s Joe a celebrar a “capitulação” separatista diante de uma boa cerveja. O presidente da Câmara deixou de ser “presidente” da República da Concha, mas a bandeira, de côr azul marinho com um búzio desenhado a branco, continua a ser um dos souvenires mais cotizados da cidade.
RUI FERREIRA, em Key West
O INDEPENDENTE
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