ADEUS, MEU AMIGO
"Até já".
Afeto cívico no adeus a Brizola
Dora Kramer/Jornal do Brasil
Em sua despedida no Palácio Guanabara, Leonel Brizola esteve assim na terra como em direção ao céu: cercado pelo afeto cívico dos seguidores - a grande maioria pobre, feia, desgrenhada, desdentada e, ontem, também desconsolada.
De cada dez que se apinhavam no salão, ou se alinhavam na imensa fila que ganhava quarteirões para além dos portões do palácio, pelo menos dois traziam ao pescoço o lenço vermelho, marca inequívoca do brizolismo.
Não é para qualquer um, hoje talvez para nenhum político, ostentar o ''ismo'' atrás do nome e, quando fora do poder, juntar tanta nem tão chorosa gente para lhe dizer adeus. Dos que tiveram causa, e mantiveram-se fiéis a ela, Brizola foi o último.
Suas idéias podiam não ser ajuizadas nem lá muito modernas, mas eram firmes e quanto a isso não há quem ouse levantar a menor dúvida.
Brizola deixa para a História um registro de 60 anos de vida pública, mas foi sem nos deixar dela um registro com a sua versão da História da qual foi testemunha.
Digamos que não por falta de tentativa. Foram três ao todo. Ele resistia a biografias que lhe pudessem dar a impressão de aposentadoria. Da primeira vez, usou este argumento - ''não quero dar a entender que cheguei ao fim''; na segunda, pediu tempo até depois da campanha presidencial de 2002.
Na terceira, entretanto, passada a eleição, sentado numa cadeira em frente ao sofá na sala do apartamento da Avenida Atlântica, mar de Copacabana estendido à frente, seus olhos brilharam em sinal de concordância.
Era a senha que a ambiciosa sentada à sua frente, ansiosa por captar-lhe o testemunho, pensou ter recebido.
Pudera, ato contínuo Brizola descansou o copo de vinho tinto na bandeja da mesa ao lado, interrompeu a peroração já oposicionista mal havia começado o governo Lula e saiu apartamento adentro como guia de excursão pelos arquivos em livros, documentos e toda sorte de papelada já em vias de organização por uma pequena equipe, sem objetivo específico.
Pronto, o material para iniciar o trabalho estava ali, pensa logo a candidata a autora, já sentindo-se parte de uma dupla de trabalho e com a sonhada biografia em marcha.
A idéia, detalhadamente explicada a ele, era fazer de Brizola o narrador das últimas seis décadas da política brasileira sob o ponto de vista de quem atravessou o período vendo o mundo virar de cabeça para baixo à sua volta sem sentir-se minimamente obrigado a virar junto seus conceitos e, ainda assim, inteiramente à vontade para se manter na luta.
Não havia dois como Brizola e o argumento lhe pareceu justo.
''Acho que podemos fazer'', disse ele.
De volta à sala, de novo sentados perto da bandeja com vinho, queijo e salame, Leonel Brizola apresenta-se pronto à execução do projeto: determina que serão dois livros, o primeiro volume dedicado à vida e o segundo à obra.
Diz no que consistirá o conteúdo e como será a forma de ambos, fala, fala, até a interrupção cautelosa: ''Mas, governador, o livro quem escreverá sou eu, o senhor é o personagem, não o autor.''
Com jeito de quem sabia o tempo todo o fim da história, Brizola dá um sorriso de ironia plena, vira as palmas das duas mãos para cima como quem diz ''paciência'' e encerra o assunto: ''Está vendo? Não vai dar para fazer o livro, você é muito autoritária...''
E assim deve ter sido com outros proponentes, não obstante uma espirituosa autodefinição de Leonel Brizola dizendo-se um servo dos horóscopos: ''Sou de aquário, cordato e, até certo ponto, submisso".
Até o fim
Brizola saiu de cena fazendo política até o último minuto. Domingo à noite, doente, tomando soro, insistiu em receber em casa o casal Garotinho para discutir o projeto de unir o PDT ao PMDB.
A governadora e o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro quiseram desistir quando souberam que o médico proibira reuniões políticas.
Mas Brizola insistiu, estava animado com a possibilidade de vir a ser o candidato a prefeito do Rio numa coligação entre os dois partidos.
Mesmo de pijamas, não mostrava nenhum traço de indisposição que pudesse antecipar o que aconteceria pouco mais de 24 horas depois.
Falou, gesticulou, brincou, avaliou, analisou o cenário político para concluir que lhe cabia ainda a tarefa de construir ao eleitorado brasileiro uma alternativa ao PSOL pela esquerda, ao PFL e ao PSDB pela direita e ao PT pelo centro, campo onde, na avaliação de Brizola, Lula vai estacionar.
Ontem de manhã, ele teria encontro com o presidente do PMDB, Michel Temer, para fechar grande acordo nacional, combinar lutas futuras porque para Brizola ainda era cedo demais.
A última entrevista do Brizola ao Globo
Editorial/JB
O guerreiro descansa
Fosse outro o personagem, tantos comentários dissonantes e definições de tal forma pendulares poderiam causar estranheza. No caso de Leonel de Moura Brizola, fulminado na segunda-feira por um enfarte agudo do miocárdio, só poderia ser assim. Morto aos 82 anos, Brizola foi desde sempre um polemista vocacional, o epicentro de furacões, o senhor das tempestades, o combatente incansável. ''Sou como cavalo inglês, vou morrer na cancha'', prometeu. Cumpriu a promessa. E a reação à partida do último caudilho se transformaria na mais perfeita homenagem a alguém avesso a unanimidades.
Em discursos, declarações e entrevistas, brasileiros de todas as tendências forneceram uma amostra da extensão do vocabulário inspirado por Brizola. Coerente, destemido, prisioneiro de convicções e princípios. Ou centralizador, personalista, teimoso. Verborrágico, falastrão. Ou grande orador, tribuno carismático. Político disposto a qualquer aliança, articulador de acordos detestáveis, filhos do oportunismo. Ou estrategista talentoso, capaz de suportar parcerias pouco agradáveis para chegar mais rapidamente ao destino desejado pelas massas populares. O isto e o aquilo. Assim haveria de ser com Brizola.
Nem poderia ser tão diferente com um homem que na metade do século passado, com pouco mais de 30 anos, começou a construção de uma biografia atulhada de singularidades. Aquele gaúcho de Carazinho, estrela nascente do PTB getulista, deixou claro que iria longe, e não se deteria nas fronteiras do Estado. Ele seria o mais jovem governador do Rio Grande do Sul. Em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, chefiou a reação à quartelada que tentou impedir a posse do vice-presidente João Goulart.
Transformado em figura nacional, candidatou-se a deputado federal pelo Rio de Janeiro nas eleições de 1962. Conseguiu a maior votação da história. Nos anos seguintes, ao defender em pronunciamentos cada vez mais agressivos a execução de reformas ''na lei ou na marra'', entrou em cena um Brizola bifronte que, em muitos momentos, confundiu os próprios devotos. Graças ao governador, Jango pudera tomar posse. A atuação do deputado (e cunhado do presidente) contribuiria poderosamente para que os militares o derrubassem em 1964.
Ninguém sofreu exílio tão longo. Depois de algumas aventuras guerrilheiras, sossegou. De volta ao Brasil ao fim de 15 anos, confiscaram-lhe o PTB. Fundou o PDT e assim nasceu o ''brizolismo'' - uma confusa mistura de dogmas nacionalistas com chavões antiamericanos, temperados pelo elogio do envelhecido ideário trabalhista. Os eleitores nunca souberam ao certo o que era isso, mas votavam em Brizola. Eleito governador do Rio duas vezes, sucessivamente derrotado em disputas presidenciais, fez sempre o que achou correto. E afastou quem se negou a acompanhá-lo.
Defendeu a prorrogação do mandato do general João Figueiredo, discursou nos palanques da campanha das Diretas-Já, flertou com um governo o Collor já agonizante, manteve-se em feroz oposição a Fernando Henrique e ajudou a eleger o presidente Lula da Silva, com quem logo brigou.
Na véspera da morte, já acamado, o lutador participou de reuniões políticas. Vai fazer muita falta ao PDT, que dificilmente sobreviverá à morte do comandante. Brizolismo sem Brizola é janismo sem Jânio. E o Brasil terá de examinar com a merecida atenção uma genuína relíquia política. O guerreiro descansa em paz. Morreu na cancha.
(C) 2004 Jornal do Brasil
O homem da metralhadora
Cigarro na boca, metralhadora Ina no ombro, o governador Leonel Brizola desce ao porão do Palácio Piratini para mais um pronunciamento através da Cadeia da Legalidade. É 1961, auge da crise da renúncia de Jânio. As armas não foram usadas, evitou-se a guerra civil mas Brizola seguiu pela vida afora de metralhadora. A verbal, que cuspia palavras francas, certeiras e corajosas, numa cultura política marcada pela dissimulação e o eufemismo.
A franqueza e a sinceridade quase rude muito o distinguiram na segunda fase de sua vida política, após a volta do exílio. Concordando ou discordando dele, ninguém podia ignorar o que pensava sobre tudo e todos. Com Brizola, vai-se a franqueza na política.
As gerações pós-redemocratização lembram-se dele no PDT, construindo Cieps no Rio, perdendo eleições presidenciais, brigando e se reconciliando com o PT e com Lula, afagando ou desancando presidentes. Não do homem da metralhadora Ina, que protagonizou o mais importante movimento de resistência democrática do país. O país esteve à beira da guerra civil mas a democracia prevaleceu, mesmo com um remendo parlamentarista. O golpe acabou vindo, em 1964, mas ficou a lembrança de que o povo organizado, tendo um líder, pode fazer a hora. Como acabou fazendo entre 1984 e 1985, pondo fim à ditadura pela via eleitoral. Muitos, nem tão jovens, só puderam avaliar o inteiro papel de Brizola na crise de 1961 com a publicação do livro “Que as armas não falem”, de Paulo Markun e Hamilton. Infelizmente, talvez, o episódio tenha despertado a ilusão da luta armada nos jovens que se imolaram durante a ditadura. E num primeiro momento, com o apoio dele, que lá do Uruguai tentava comandar movimentos de resistência à ditadura.
Neste final da vida, o que consumiu Brizola foi sua profunda decepção com o governo Lula. Mas este é um desencontro que vem de longe. Quando voltou ao Brasil depois da Anistia de 1979, Brizola deparou-se com o movimento pela “unidade das oposições” em torno do PMDB. O apelo à unidade impediu que muitos retornassem ao berço trabalhista. Para completar, perdeu a sigla PTB para Ivete Vargas. A seguir, veio a criação do PT, que ele tomou como uma rejeição e um golpe. Acreditou que seu PDT viesse a congregar sindicalistas, nacionalistas e a esquerda democrática. Ainda assim, “engoliu” Lula em 1989, e foi seu candidato a vice em 1998. Em 2002, apoiando Ciro Gomes, dizia num almoço em Brasília:
— O PT está muito amestrado, virou bom moço. Para mim, já foi cooptado...
E naquele momento, antes ainda do segundo turno, ninguém imaginava o que viria a ser o governo Lula.
Mas Brizola chegou mesmo a acreditar que Lula viesse a se tornar um herdeiro moderno do trabalhismo. Quando aceitou ser vice na chapa de 1998, disse isso a Lula, numa conversa de que participaram o senador Mercadante e o deputado Neiva Moreira: presenciara o momento em que “o velho Getúlio”, como dizia, nomeou Jango como seu herdeiro político. Com a morte de Jango, assumira a tarefa de manter viva a tradição trabalhista. Agora, em 1998, estava convencido de que este papel caberia a Lula, e que, para isso, PT e PDT teriam que se entender.
Mas a chapa Lula-Brizola foi derrotada por Fernando Henrique e a relação PDT-PT degringolou para sempre, resultando na hostilidades de brizolistas ontem a Lula no velório.
Brizola vivia com certeza uma grande solidão política. No réveillon de 1999 para 2000, já de madrugada, conversou até as 5 horas da manhã na sacada de seu apartamento com Cibilis Viana e um grupo de convidados. Olhando o povo que se retirava da praia sob a chuva fina, evocou muitas passagens de sua vida e os companheiros que haviam partido recentemente: Darcy Ribeiro, Bocayuva Cunha, Doutel de Andrade e Brandão Monteiro, entre outros. Mas achava que ainda tinha muito o que fazer no século que se iniciava. Vê-se que o seu já passara e lhe dera um destacado papel na História da democracia brasileira.
Duas linhas na educação
Um dos méritos de Leonel Brizola foi ter inscrito a educação como política pública prioritária. Fez isso no governo gaúcho e depois no Rio. Lula escolheu exatamente o ministro da área, Tarso Genro, que é gaúcho, para representá-los no sepultamento em São Borja.
Antes de embarcar para Nova York, Lula teve com Tarso uma reunião para avaliar o andamento da política educacional. Aprovou os quatro eixos adotados pelo ministério: alfabetização e inclusão, ensino técnico e tecnológico, instituição do Fundeb e reforma do ensino superior. Segundo o ministro, pediu atenção especial aos dois últimos. O Fundeb, versão ampliada do Fundef, para abarcar também o ensino médio, é a receita para a melhora da qualidade do ensino básico. O projeto vai ao Congresso em agosto.
Na reforma do ensino superior, Lula insistiu na separação entre joio e trigo. Que as boas instituições privadas sejam premiadas e os balcões que vendem diplomas, combatidos. Em relação à universidade pública, concordou com a linha de Tarso: agilizar o repasse de recursos a todas, mas reservando recursos para financiar projetos destinados à expansão e à melhora da qualidade.
ESTABELECEU-SE uma trégua entre os ministros Aldo Rebelo e José Dirceu. Bombeiros entraram em campo fazendo ver aos dois que precisam baixar as armas e conviver construtivamente. Teriam prometido fazer o possível. É acreditar ou esperar por nova crise.
A COLUNA DE ELIO GASPARI
Com Brizola, acaba-se o século XX
O século XIX brasileiro terminou em 1891, com a morte de D. Pedro II e o XX, em 2004, com o fim de Leonel Brizola. Num caso, pela importância do falecido. No outro o declínio embutiu-se na longevidade. Nos dois, o imperador e o engenheiro foram derradeiros depositários dos sonhos, dos pesadelos e das desgraças que fizeram a história de seus tempos. Mortos, fecharam a cena, mesmo depois de terem deixado de ser protagonistas.
Deixando-se de lado o Pedro Banana, Brizola foi o último personagem da História de uma geração que viveu paixões e antagonismos a um só tempo insuperáveis e inúteis. Noves fora Juscelino Kubitschek, com seu enorme sorriso e sua fé no progresso, os principais personagens desse tempo escreveram páginas de rancores e ódios, para nada.
Foram muitas as encrencas nacionais do século XX, mas a maior delas aconteceu em 1964, quando o Brasil marchava para uma divisão que parecia irremediável. De um lado estava JK, candidato a presidente por uma coligação conservadora muito parecida com a que o tucanato prepara em benefício de FFHH. De outro, Carlos Lacerda, candidato de uma frente feroz, modernizante e cesarista.
Nos primeiros meses de 1964 a direita não admitia que JK fosse eleito presidente e a esquerda não aceitava que Lacerda sucedesse a João Goulart.
Vieram os generais e deu no que deu. Passados vinte anos de ditadura, qualquer lacerdista seria capaz de reconhecer que JK teria sido a melhor escolha. E qualquer esquerdista preferiria ter visto Lacerda no Planalto.
Caiu-se no atoleiro porque nenhum dos dois grupos tinha compromisso com a democracia. Melhor dizendo, ela era um brinquedo que só servia como instrumento de vitória.
Brizola morreu num novo século de um país em que não há mais espaço para apelos (tão ao seu gosto) às raízes nacionalistas dos militares, nem às insurreições dos despossuídos.
Será sepultado em São Borja a um só tempo o campeão da legalidade constitucional de 1961 e o último manda-brasa do século XX.
Vale lembrar suas palavras no dia 13 de março de 1964, quando se supunha que as forças civis e militares anexas ao dispositivo político de João Goulart arrastariam as fichas do impasse constitucional que cevavam: “O Congresso é hoje um poder que está comprometido, que se compõe de uma maioria de privilegiados. (...) Portanto, aqui vai uma palavra de quem deseja uma estrutura reformada, de quem deseja ficar livre da espoliação internacional. Por que não transferir a decisão para o próprio povo brasileiro, fonte de todo o poder?” Cunhado do presidente e candidato à sua sucessão, queria uma Constituinte que lhe desobstruísse o caminho para o Planalto. A ditadura militar obstruiu-lhe a vida, obrigando-o a 15 anos de exílio.
Nomeando-se herdeiro de Getulio Vargas, Leonel Brizola viveu carregando a bandeira do trabalhismo (seja lá o que for que isso signifique). Morto, reavivou emocionantes lembranças do século XX, mas deixou pequena herança ao XXI.
ELIO GASPARI é jornalista.
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