Questões cornológicas
por João Ubaldo Ribeiro
Se vocês estão pensando que trocaram uma letra aí em cima, esclareço que não trocaram. Não é “cronológicas”, é “cornológicas” mesmo. Trata-se do que presumo ser um neologismo, para qualificar fenômenos ligados a cornos. Apesar de injusta fama em contrário, não sou dado a inventar palavras e perpetrei esta por achá-la necessária para sanar uma falha em nosso já indigente vocabulário. Bem verdade que sua etimologia, misturando latim com grego, haverá de alçar sobrolhos entre os filólogos, mas, se Auguste Comte pôde fazer a mesma coisa com “sociologia”, creio que, transcorrido tanto tempo, um brasileiro já tem o mesmo direito, sem macular excessivamente a nossa luzente imagem no exterior ou expor-se a acusações de plágio e macaqueação.
A noção de corno, a começar pela própria palavra, ainda classificada como chula mas de emprego corriqueiro (e prático, ouso arriscar peraltamente) na melhor sociedade, vem sofrendo, como testemunhamos os mais velhos e jamais saberão os mais novos, enormes modificações em nossa cultura. Ainda se mata e bate bastante por motivos cornológicos no Brasil, mas a verdade é que se trata de prática cada vez mais démodé , politicamente incorretíssima e inconcebível para uma pessoa realmente moderna. Vem a calhar, se procurarmos não ser hipócritas, a reflexão que meu pranteado amigo Zé de Honorina expunha em Itaparica, ao perceber excessiva confiança ou negligência da parte de algum consorte: “De um bom corno ninguém neste mundo pode dizer que está livre.”
Tanto assim que até mesmo no Nordeste, onde, quando eu era menino, chamar alguém de corno rendia invariavelmente peixeirada e provável absolvição do peixeirador por um júri popular, a maneira de encarar o tema mudou muito, tanto assim que há notícias de acalorados concursos de cornos em Pernambuco, além de clubes e outras entidades da categoria. Na Praia do Forte, Bahia, onde estive faz alguns anos, me informaram, garantindo absoluta veracidade, sobre o disputadíssimo troféu Corno do Ano. Estavam até estudando uma reformulação do regulamento, para evitar problemas como o ocorrido no ano anterior, em que o irresignado segundo colocado fez um discurso de protesto, devolveu o diploma (o troféu principal é um chapéu com dois vistosos chifres de zebu a ornamentá-lo) e quase quebra tudo.
—- Ele de fato era e ainda é um grande corno — me disse meu informante. — Não se pode negar valor a ele, é corno há muitos anos, tem uma grande tradição. Mas deu azar de pegar um concorrente imbatível, um coroa viúvo, pai de três filhos grandes, que casou com uma moça uns quarenta anos mais nova, que não só começou a dar corno nele com toda a vizinhança em menos de um mês como não poupou nem os três enteados, passou os três nas armas! Aí você tem de admitir que não tinha competidor à altura, é caso de Guinness. Este ano eu acho que vão criar um troféu especial pelo conjunto da obra, para ver se ele se consola, ele merece.
Contudo, o assunto é ainda sujeito a controvérsia. Nem todo mundo aceita essa mudança de costumes. Sei que somente eu leio essas coisas, mas li mesmo, como já noticiei aqui, que no Japão vendem (comercializam, aliás; hoje em dia ninguém vende mais nada, só comercializa) calcinhas e cuecas que ficam irremediavelmente manchadas de uma cor pouco discreta, se tocadas por algum vestígio de esperma. Além disso, há um produto, já esqueci se creme, loção ou outro, que, passado na pele, também a mancha, se o paciente tomar um banho ou lavar a parte do corpo sob fiscalização. Claro, no Brasil a roupa de baixo não funcionaria, porque as compatriotas dispostas (água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando quer dar ninguém segura — repetia também o grande Zé) a apor chifres nas testas de seus parceiros habituais teriam um estoque de calcinhas extras nas bolsas ou nas gavetas, assim como os homens guardariam estepes de cuecas nas pastas ou também gavetas do escritório. Quanto à lavação, não creio que tampouco houvesse problema, porque, como não se ignora, o brasileiro e a brasileira são muito limpinhos e uma indignada alegação de que “eu lavei, eu lavo sempre!” poderia bastar para explicar a mancha.
Agora, também li que cientistas da universidade americana de Emory, em Atlanta, descobriram um certo gene da fidelidade. Caminho aberto, ainda que presentemente remoto, para os cornófobos exigirem atestado de vacina de seus eleitos e o governo lançar o programa Corno Zero, certamente preferível, para a vasta maioria dos governados, à cornidão participativa que algum ideólogo poderia sugerir. Mas também receio que essa tentativa não dará certo. Além de, provavelmente, a vacina não dever fornecer proteção absoluta, a experiência indica que ela passaria a ser vendida em camelôs 80 por cento mais barata e sua versão paraguaia, além de dar ressaca, produziria uma quantidade insustentável de tocadores de harpas, e o Brasil não precisa de mais um problema sociocacofônico, entre os muitos que já enfrenta.
Não, receio que, apesar dos progressos científicos, o Ibama não precisará incluir o corno na lista de espécies ameaçadas. Ele faz parte da vida nacional. Outro dia mesmo, no boteco, um dos companheiros de mesa, vítima de memorável corneamento que, apesar de longínquo no tempo, ainda hoje é lembrado, lamentou que não se pode mais contar piada de português, piada de japonês, piada de negro, piada de homossexual, piada de anão, piada de médico, piada de nada. Mas piada de corno pode, queixou-se ele ressentido, todo mundo curte com a cara do corno. Por que tal injustiça? Isso o entristecia.
— Não fique assim —- consolou-o uma das senhoras presentes. — É simples, é porque não é minoria.
Se vocês estão pensando que trocaram uma letra aí em cima, esclareço que não trocaram. Não é “cronológicas”, é “cornológicas” mesmo. Trata-se do que presumo ser um neologismo, para qualificar fenômenos ligados a cornos. Apesar de injusta fama em contrário, não sou dado a inventar palavras e perpetrei esta por achá-la necessária para sanar uma falha em nosso já indigente vocabulário. Bem verdade que sua etimologia, misturando latim com grego, haverá de alçar sobrolhos entre os filólogos, mas, se Auguste Comte pôde fazer a mesma coisa com “sociologia”, creio que, transcorrido tanto tempo, um brasileiro já tem o mesmo direito, sem macular excessivamente a nossa luzente imagem no exterior ou expor-se a acusações de plágio e macaqueação.
A noção de corno, a começar pela própria palavra, ainda classificada como chula mas de emprego corriqueiro (e prático, ouso arriscar peraltamente) na melhor sociedade, vem sofrendo, como testemunhamos os mais velhos e jamais saberão os mais novos, enormes modificações em nossa cultura. Ainda se mata e bate bastante por motivos cornológicos no Brasil, mas a verdade é que se trata de prática cada vez mais démodé , politicamente incorretíssima e inconcebível para uma pessoa realmente moderna. Vem a calhar, se procurarmos não ser hipócritas, a reflexão que meu pranteado amigo Zé de Honorina expunha em Itaparica, ao perceber excessiva confiança ou negligência da parte de algum consorte: “De um bom corno ninguém neste mundo pode dizer que está livre.”
Tanto assim que até mesmo no Nordeste, onde, quando eu era menino, chamar alguém de corno rendia invariavelmente peixeirada e provável absolvição do peixeirador por um júri popular, a maneira de encarar o tema mudou muito, tanto assim que há notícias de acalorados concursos de cornos em Pernambuco, além de clubes e outras entidades da categoria. Na Praia do Forte, Bahia, onde estive faz alguns anos, me informaram, garantindo absoluta veracidade, sobre o disputadíssimo troféu Corno do Ano. Estavam até estudando uma reformulação do regulamento, para evitar problemas como o ocorrido no ano anterior, em que o irresignado segundo colocado fez um discurso de protesto, devolveu o diploma (o troféu principal é um chapéu com dois vistosos chifres de zebu a ornamentá-lo) e quase quebra tudo.
—- Ele de fato era e ainda é um grande corno — me disse meu informante. — Não se pode negar valor a ele, é corno há muitos anos, tem uma grande tradição. Mas deu azar de pegar um concorrente imbatível, um coroa viúvo, pai de três filhos grandes, que casou com uma moça uns quarenta anos mais nova, que não só começou a dar corno nele com toda a vizinhança em menos de um mês como não poupou nem os três enteados, passou os três nas armas! Aí você tem de admitir que não tinha competidor à altura, é caso de Guinness. Este ano eu acho que vão criar um troféu especial pelo conjunto da obra, para ver se ele se consola, ele merece.
Contudo, o assunto é ainda sujeito a controvérsia. Nem todo mundo aceita essa mudança de costumes. Sei que somente eu leio essas coisas, mas li mesmo, como já noticiei aqui, que no Japão vendem (comercializam, aliás; hoje em dia ninguém vende mais nada, só comercializa) calcinhas e cuecas que ficam irremediavelmente manchadas de uma cor pouco discreta, se tocadas por algum vestígio de esperma. Além disso, há um produto, já esqueci se creme, loção ou outro, que, passado na pele, também a mancha, se o paciente tomar um banho ou lavar a parte do corpo sob fiscalização. Claro, no Brasil a roupa de baixo não funcionaria, porque as compatriotas dispostas (água morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando quer dar ninguém segura — repetia também o grande Zé) a apor chifres nas testas de seus parceiros habituais teriam um estoque de calcinhas extras nas bolsas ou nas gavetas, assim como os homens guardariam estepes de cuecas nas pastas ou também gavetas do escritório. Quanto à lavação, não creio que tampouco houvesse problema, porque, como não se ignora, o brasileiro e a brasileira são muito limpinhos e uma indignada alegação de que “eu lavei, eu lavo sempre!” poderia bastar para explicar a mancha.
Agora, também li que cientistas da universidade americana de Emory, em Atlanta, descobriram um certo gene da fidelidade. Caminho aberto, ainda que presentemente remoto, para os cornófobos exigirem atestado de vacina de seus eleitos e o governo lançar o programa Corno Zero, certamente preferível, para a vasta maioria dos governados, à cornidão participativa que algum ideólogo poderia sugerir. Mas também receio que essa tentativa não dará certo. Além de, provavelmente, a vacina não dever fornecer proteção absoluta, a experiência indica que ela passaria a ser vendida em camelôs 80 por cento mais barata e sua versão paraguaia, além de dar ressaca, produziria uma quantidade insustentável de tocadores de harpas, e o Brasil não precisa de mais um problema sociocacofônico, entre os muitos que já enfrenta.
Não, receio que, apesar dos progressos científicos, o Ibama não precisará incluir o corno na lista de espécies ameaçadas. Ele faz parte da vida nacional. Outro dia mesmo, no boteco, um dos companheiros de mesa, vítima de memorável corneamento que, apesar de longínquo no tempo, ainda hoje é lembrado, lamentou que não se pode mais contar piada de português, piada de japonês, piada de negro, piada de homossexual, piada de anão, piada de médico, piada de nada. Mas piada de corno pode, queixou-se ele ressentido, todo mundo curte com a cara do corno. Por que tal injustiça? Isso o entristecia.
— Não fique assim —- consolou-o uma das senhoras presentes. — É simples, é porque não é minoria.
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