julho 08, 2004

Simone grava um disco inteiro só com Ivan Lins

Há algum tempo, quando teve um problema nas cordas vocais, Ivan Lins achou que fosse ter uma vida limitada como intérprete. Dando como quase certa sua profecia, felizmente equivocada, passou a pensar numa cantora que interpretasse suas composições, algo assim como Dionne Warwick fez com Burt Bacharach. E, nesse processo, só um nome vinha à sua cabeça: Simone. Apesar de velhos conhecidos e de juntos terem emplacado sucessos como “Começar de novo” (tema da série “Malu mulher”) e “Novo tempo”, parcerias com Vitor Martins, Lins não teve coragem de fazer o convite. Mas a idéia de um projeto ficou na cabeça. Mal sabia o compositor que a cantora, que em 1996 fez um disco com a obra de Martinho da Vila, sempre sonhou em fazer o mesmo com as canções dele, a quem considera a “pessoa mais musical desde Tom Jobim”. Ivan Lins confidenciou o seu desejo ao produtor Marcos Maynard, que comprou a idéia de juntar o carioca e a baiana no álbum de inéditas “Baiana da gema”.



— Certa vez, Simone foi lá em casa e mostrei a ela o projeto que estava fazendo sobre as poetas brasileiras. Ela gostou e quase falei sobre o que eu pensava em fazer com ela. A partir daí, minhas chances melhoraram muito— brinca o compositor.

— O Ivan é muito tímido. Nesse dia, eu saí da casa dele maravilhada. Disse que se ele não levasse aquele projeto até o fim eu mesma o levaria. Quando Maynard falou sobre a possibilidade de realizarmos um disco juntos, eu ainda estava na minha antiga gravadora. Mas acertamos que faríamos na primeira oportunidade.

Para ela, a atual fase do compositor é esplendorosa

E, quando a oportunidade surgiu, a cantora baiana ficou impressionada com o material que o compositor carioca tinha separado:

— Parecia goiabada com queijo, tudo dava certo. É uma fase esplendorosa. Já no primeiro encontro, ele apareceu com umas 15, 16 músicas. Todas inéditas. Ali começamos a definir para que lado iríamos — diz Simone. — Mas sempre jogamos muito abertos. Quando eu não queria gravar algo, dizia. Mas também ouvi muito o que Ivan e Paulinho (Albuquerque, produtor do disco) sugeriram.

O rigor no repertório é, para Ivan Lins, o que faz de Simone uma cantora diferenciada:

— O disco é dela. O que está sendo dito através das letras, por mais que não tenham sido escritas por ela, acaba sendo de sua responsabilidade. E aí está o segredo das grandes intérpretes. Música boa tem um monte por aí, mas tem que ter comprometimento. Simone era meu sonho de consumo porque, além de tudo, tem um timbre próximo ao meu.

Mas uma coisa é certa, as parcerias fechadas por Ivan Lins não criaram grandes dificuldades para o tal comprometimento de Simone. Velhos conhecidos da cantora emprestaram versos para as melodias sofisticadas do compositor. Aldir Blanc, de quem a cantora já havia gravado, por exemplo, “Coisa feita” (parceria com Paulo Emílio e João Bosco), escreveu “Por favor”. Vitor Martins , com quem Ivan Lins voltou a compor, fez “Voar” e “Tanto amor”. Joyce, que participou do primeiro disco da cantora, de 1973, com “Encontro marcado”, fez a letra do belo bolero “Cínica”. Já Paulo César Pinheiro, autor de um dos clássicos da carreira de Simone, “Tô voltando”, com Maurício Tapajós, compareceu com três letras no disco.



— A parceria com o Paulinho Pinheiro, assim como as outras, surgiram a partir de 1999, quando deixei a (gravadora) Velas, e o Vitor Martins, meu parceiro da vida toda, disse que estava querendo dar um tempo de compor — conta Ivan Lins. — O Paulinho é fantástico, um criador de imagens que tem o samba na alma.

O curioso é que “É festa”, uma das parcerias dos dois, incluída na trilha da novela “Senhora do destino”, só ganhou vida porque Paulinho Albuquerque resolveu revirar as gavetas repletas de gravações guardadas de Ivan.

— Eu tenho a mania de gravar as coisas e jogar na gaveta. Muitas ficam meses até serem redescobertas — conta Ivan. — Paulinho pegou uma das fitas não identificadas e perguntou o que era. Disse que não sabia, mas, quando ouvimos, ficamos maravilhados.

Disco tem a participação de Martinho da Vila

A única música feita por encomenda acabou dando o nome e o tom do disco. O sambão “Baiana da gema” faz uma ponte entre o Rio de Ivan Lins e a Bahia de Simone (“Esse samba juntou o compositor com a voz da morena/ Carioca da clara com a baiana da gema”) e trouxe de volta para o repertório da cantora o ritmo com que ela fez sucesso com “O amanhã”, de João Sérgio, e “Por um dia de graça”, de Luiz Carlos da Vila.

— Na Bahia, eu costumava ir ao Mercado Modelo com Hermínio Bello de Carvalho ouvir samba de roda. Quando morei em São Paulo, antes de vir para o Rio, conheci as coisas do Adoniran Barbosa com os Demônios da Garoa. Cheguei ao Rio com todos os discos do Paulinho da Viola e do Martinho da Vila na bagagem. Sem falar em Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Ciro Monteiro e outros — conta Simone.

Num disco no qual Simone reencontra o samba não podia faltar uma letra e a participação de Martinho da Vila. Mas ela foi além e, para a gravação de “Saravá! Saravá!”, convidou também outros dois bambas: Zeca Pagodinho e Dudu Nobre. Foi a primeira vez que os três gravaram juntos.

Nem só de samba e velhos conhecidos é feito o CD. Ivan Lins levou para o projeto parcerias com Celso Viáfora (“Veneziana” e “Atlântida”), Flora Figueiredo (“Enrosco”), Francisco Bosco (“Dandara”) e Elisa Lucinda (“Espelho seu”).

— Tínhamos resolvido não chamar nenhum músico de nossas bandas para não haver ciumeira. Mas foram coisas tão diversas que nós e Gilson Peranzzetta, que fez a maioria dos arranjos com Ivan, resolvemos montar duas bandas. Uma para os sambas e outra para as canções — diz Simone.
João Pimentel/O GLOBO