agosto 20, 2004

Agora só falta um ato institucional



por JOÃO UBALDO RIBEIRO

Em episódio que não sei mais se se estuda na História do Brasil, pois nem mesmo sei se ainda se estuda História do Brasil, nos contavam, às vezes com admiração, que D. Pedro, o da Independência, irritado com a primeira Assembléia Constituinte brasileira, por ele considerada folgada e ousada, encerrou a brincadeira e outorgou a Constituição do novo Estado. Decerto a razão não é esta, é antes um sintoma, mas vejo aí um momento exemplar da tradição de encarar o Estado (que, na conversa, chamamos de “governo”) como nosso mestre e os nossos direitos como por ele dadivados. Os governantes não são mandatários ou representantes nossos, mas patrões ou chefes.

Claro, há muito o que discutir sobre o conceito de praticamente cada palavra que vou usar — isto sempre, de alguma forma, é possível —, mas vamos fingir que existe consenso sobre elas, não há de fazer muito mal agora. Nunca, de fato, tivemos democracia. E a República não trouxe nenhuma mudança efetivamente básica para o povo brasileiro, nenhuma revolução ou movimento o fez. Tudo continua como era dantes, só que os defeitos, digamos, de fábrica, vão piorando com o tempo e ficam cada vez mais difíceis de consertar. Alguns, na minha lúgubre opinião, jamais terão reparo, até porque a Humanidade, pelo menos como a conhecemos, deve acabar antes.

Os tempos recentes têm sido um pouco menos ruins, levando-se em conta um bom indicador de democracia, que é a liberdade de informação e de expressão, bem como de opinião e criação artística. Nisto, vimos sendo felizes, pois de fato, dando-se o abatimento das limitações que qualquer um poderá arrolar indefinidamente, fala-se o que se quer e se manifesta o que se quer, dentro dos limites da lei. Se isso não é conseguido por alguém ou por grupos e setores, não se deve à ação direta do governo. No que diz respeito a ele, cada pessoa ou grupo pode pensar como quiser e dizer o que quiser. Não é assim?

Não, não é. Era, quando o governo atual estava na oposição, como, aliás, tudo mais em política. Naquela época, não havia denuncismo, não só na imprensa quanto entre os oposicionistas, como o presidente mesmo (não canso de lembrar: que excelente candidato foi o nosso presidente!), que chamava uns e outros de ladrão a torto e a direito e, sobre os deputados, cujo trabalho atualmente elogia, disse que não passavam de 300 picaretas, sem que ninguém, o que podia ter sido feito, procurasse a Justiça, para que ele provasse que pelo menos crime de injúria ou difamação não havia cometido. Mas, como alieno culo piper refrigerium est continua princípio basilar da vida, agora campeia a denúncia irresponsável e leviana, a que urge dar cobro.

Sim, repita-se a cantilena. A imprensa comete erros e excessos, como toda atividade humana. Para coibi-los, existem leis. Mas não foi o governo que deu ao cidadão o direito de estrilar publicamente contra o que ele faz ou não faz. O direito a pensar e opinar é básico para a plenitude humana. O direito a expressar esse pensamento também não é uma benesse do governo, faz parte da dignidade e da liberdade de cada um de nós. Agora, a pretexto de regulamentar uma atividade profissional bastante diferente, por exemplo, da de um médico ou advogado, o governo revive uma idéia de odor mussolínico e encaminha ao Congresso (ainda bem que não foi uma medida provisória, instrumento legislativo ditatorial hoje costumeiro e que o presidente, quando ainda não havia denuncismo, prometeu não usar e acabar e não só não a acabou como a usa mais do que faz embaixadinhas) um projeto que cria o Conselho Federal de Jornalismo, para “orientar, disciplinar e fiscalizar” o exercício do jornalismo. Tudo na melhor das intenções, é claro. É só com a trivial finalidade de regulamentar uma profissão como qualquer outra.

Não é. É o começo do arrolhamento da imprensa. E é um caminho para o peleguismo. Já existem, no projeto, os embriões completos de um sistema de censura e tutela, que poderá calar a boca de qualquer jornalista, mesmo que não faça denúncias, mas apenas críticas consideradas, digamos, destrutivas ou de mau gosto, como é o meu caso e o de incontáveis outros — nunca se sabe a que limites chegará o burocrata. Podemos esperar até ouvir de novo que o povo brasileiro ainda não está preparado para a democracia. Ou seja, eles nos deram o direito de falar, alguns de nós talvez tenhamos abusado e eles vão tirar esse direito, pronto.

Vão tirar uma conversa, não vão tirar coisa nenhuma. O povo, assim ou assado, por esse canal ou por aquele, por um jornal mambembe ou jornalão, numa rádio fuleira ou em cadeia, na tevê do condomínio ou em rede nacional, vai continuar a poder falar mal do governo e a dar curso ao que ouve e vê escancaradamente todo santo dia, em tudo quanto é canto para que olhe. O governo não tem nenhum direito, quem tem direito é o cidadão. Não se cumpre, mas está escrito e um dia se cumprirá: “Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.” Qualquer coisa que o governo faz só tem legitimidade se alicerçada na vontade popular. Dirão que tal vontade é expressa pelos representantes eleitos. Está certo, mas representantes eleitos que estão aí porque sua existência institucional contou com uma imprensa capaz de avaliar, criticar e denunciar. Vamos ter responsabilidade com denúncias, não vamos antecipar julgamentos, mas não vamos calar a boca, nem obedecer a manual de burocrata. Eu não vou calar a boca, ainda mais diante de um Estado que não só toma essa iniciativa como preparou, quase à sorrelfa, um plano cultural solertemente dirigista e assustadoramente policialesco. Mas que não há de prosperar. Porque, como mostrou a imprensa, nesse e em tantos outros casos, temos mente, boca e voz livres, e não foram um presente do Estado. O direito a elas é parte de nossa essência e nenhum conjunto de aspirantes a tiranetes o vai cassar.


JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.