35 anos ao serviço do porre e da amizade
João Pimentel/O GLOBO
O Bip Bip é um boteco de 18 metros quadrados, situado na pequena Rua Almirante Gonçalves, bem no coração de Copacabana. Impossível falar da história do bar, um dos principais redutos do samba e da boemia da cidade, sem falar do seu dono, Alfredo Jacinto Melo. No dia 13 de dezembro de 1968, data da decretação do Ato Institucional N 5, Alfredinho se dirigia a uma farmácia para comprar um remédio para dor de cabeça quando viu uma boca-livre. Entrou, bebeu umas e outras, e foi para sua casa em Bangu, já que precisava abrigar amigos ligados a movimentos de esquerda. Desde então virou freguês da casa, que acabou comprando em 1984 (pagou uma parte em dinheiro e outra em uísque, servido dose a dose para o antigo proprietário), transformando-a em um símbolo de resistência cultural. Pois o Bip, como é carinhosamente chamado pelos seus freqüentadores, depois de virar livro, tese de mestrado, tema de reportagens no francês “Le Monde” e no “New York Times”, ganha agora um DVD, dirigido por Luís Guimarães de Castro, e um disco de músicas inéditas, já famosas em suas rodas, interpretadas pela nata do samba carioca.
Ninguém sabe ao certo quem deu a idéia do CD
Bom malandro que é, Alfredinho, famoso pelas broncas que dá em seu bar pedindo silêncio para ouvir a música ou cobrando das pessoas contribuições para projetos sociais ou doação de sangue, preferiu ficar de fora da elaboração do projeto:
— Há mais de três anos que vinham falando dessa história. Eu não sei bem de quem é a idéia. Pensaram em fazer um disco de choro e outro de samba, mas, como sei que poderia ferir o ego de muitos amigos que vivem por aqui, preferi ficar de fora — explica Alfredinho, que credita o sucesso do bar à presença de Cristina Buarque, freqüentadora de longa data. — Ela ficava de papo comigo e os sambistas começaram a aparecer. Daí vieram as rodas informais, a turma da política e os amantes da música.
O disco, fadado a virar papo de botequim, e era mesmo, saiu do papel quando o violonista e produtor Tuninho Galante — músico que acompanhou Fátima Guedes, Nelson Sargento e produziu discos como “Candeia”, um tributo aos dez anos da morte do mestre portelense, lançado pela Funarte, em 1988 — resolveu botar a mão na massa. Galante, que havia se afastado da música para empresariar jogadores de futebol, experiência que obviamente se mostrou incompatível com seus talentos, reuniu a nata dos artistas que freqüentam o bar, para gravar.
— Batendo papo com Alfredo, tivemos a idéia de juntar todos para fazer o que o Bip sempre fez, ou seja, arrecadar um dinheiro para projetos sociais através da música. Chamei o mestre Paulão Sete Cordas para produzir o CD comigo. A intenção é levar para o estúdio a alma do bar. Costumamos brincar que o Bip é uma casa de fominhas, de craques que depois de jogar se encontram para uma pelada.
Venda de livro, vaquinha e amizade bancam disco
E põe craque e pelada nisso. O time que participa do disco, previsto para ser lançado em dezembro, conta com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Nelson Sargento, Moacyr Luz, Wilson Moreira, Cristina Buarque, Nilze Carvalho, os partideiros Renatinho e Marcos China e um time de músicos de primeira como os violonistas Maurício Carrilho e Marcelo Menezes, o cavaquinista Wanderson Martins e os percussionistas Marcos Esguleba e Felipe D’Angola. Orçado em R$ 60 mil, o disco foi feito a custo zero:
— Tínhamos uma caixa do dinheiro das vendas do livro (“Bip Bip — Um bar a serviço da alegria”, de Marceu Vieira, Luiz Pimentel e Francisco Genu) e o resto das despesas de estúdio, material gráfico e da parte industrial será rachado por nós — diz Galante.
O clima no estúdio era realmente de grande confraternização. Wilson Moreira, por exemplo, cantou o seu “Pedestal”, emocionando quem estava presente. Mas, perfeccionista, estava insatisfeito com a sua voz:
— Vocês estão achando bacana? Não sei, alguma coisa não está legal...
— Que é isso, Moreira? Está melhor do que dinheiro achado — emendou de improviso Renatinho Partideiro.
Um disco com o espírito do Bip Bip, uma espécie de quilombo do bom humor — Alfredinho, por exemplo, já foi eleito o segundo melhor garçom da cidade, no guia “Rio Botequim”, sem nunca ter atendido a ninguém — de personagens folclóricos, da esperança e do que ainda resta de indignação do carioca, cada vez mais desiludido com os desgovernos e a violência da cidade, só podia ter uma cara de crônica.
E esse é o mote do disco que tem faixas como “Samba da mala” (“Olha essa mulher que no samba entrou, é louca/ Samba mal e quer cantar, mas a voz é pouca”); “Reunião de condomínio”, de Paulinho do Cavaco; “Pra ela não voltar”, de Pedro Amorim; “Falsa tese”, de Jorge Simas e Paulo Cesar Feital; e “Sem segunda, só primeira”:
— Foram mais de 50 pessoas envolvidas no projeto. Sentia falta na música desse espírito, muito comum nos anos 70 e 80, de os artistas trabalharem por uma boa causa. O Bip é um ponto de encontro onde diariamente se festeja o congraçamento da amizade que sempre caracterizou o Rio — define Galante.
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