George W. Bush, Segunda Parte
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Como seria de esperar, a direita portuguesa - a genuína e a da moda - exultou com a vitória eleitoral de Bush. É natural: para trás ficaram quatro anos de decepção sobre as capacidades governativas do seu favorito americano. Aos olhos do mundo inteiro, o Iraque foi um desastre de todo o tamanho, para mais tornado possível através de um processo deliberado de mentira e de fabricação de supostas "provas". O Presidente dos Estados Unidos, em perfeita consciência e deliberadamente, mentiu ao mundo, desrespeitou a ONU, desprezou o direito internacional e quis convocar os seus aliados tradicionais para uma guerra fundada numa mentira: ficará como precedente e continuará a causar danos difíceis de superar na imagem da América e na relação transatlântica: decididamente, não foi boa política.
Para além do desastre do Iraque, a Administração Bush mostrou também a face unilateral dos Estados Unidos no que respeita aos direitos humanos - Guantánamo, não aceitação da jurisdição do Tribunal Penal Internacional e instituição do regime de suspensão de liberdades individuais consagrado no Patriot Act. Mostrou o seu unilateralismo, melhor, o seu egoísmo irresponsável, no que respeita a questões ambientais graves que afectam todo o planeta e em que os EUA são os principais responsáveis de algumas delas: não aceitação do Protocolo de Quioto, prospecção de petróleo no Alasca, falsificação de relatórios internos científicos relativos ao aquecimento global e outros. E mostrou o seu unilateralismo no domínio do comércio internacional, na política de défices continuados e desvalorização do dólar face ao euro, na ajuda ao combate à pobreza, até como medida política para evitar futuras complicações internacionais, e na política energética adoptada, cuja factura representou para o mundo inteiro "apenas" o custo do barril de petróleo ao dobro do preço anterior à invasão do Iraque. Francamente, não me parece que qualquer europeu, mesmo de direita, tenha alguma coisa com que se regozijar por estes quatro anos de presidência de George W. Bush.
Ah, e "o combate ao terrorismo?", perguntarão. A América não estará hoje mais segura do que estava, a seguir ao 11 de Setembro? Infelizmente, duvido que esteja. Sei que a Europa não está, como o demonstrou o ataque em Atocha, Madrid, na Páscoa passada, e como o demonstra o constante terror em que vivem, por exemplo, os ingleses, cujo ministro do Interior fala abertamente na fatalidade de um grande ataque da Al-Qaeda em Inglaterra.
É certo que os americanos, felizmente, escaparam, por enquanto, a novo morticínio ordenado por Bin Laden. Mas não sei se estarão mais seguros: Bin Laden, ao contrário das bravatas de Bush ("Vou apanhá-lo, vivo ou morto!"), continua livre e operacional, dando-se até ao luxo de falar aos americanos nas vésperas da eleição - quem o teria previsto, há três anos? E é certo ainda que a invasão do Iraque - onde a Al-Qaeda não existia, ao contrário do que jurava a Casa Branca - forneceu a esta e outras organizações terroristas um campo de recrutamento de assassinos de inesperada facilidade. Mas é ainda curioso notar que, tendo sido Bush apresentado como o campeão da luta antiterrorismo e apesar das facilidades de investigação concedidas pelo regime prisional inqualificável de Guantánamo, a maioria das investigações conduzidas a bom termo, a maioria das prisões de terroristas efectuadas e a maioria do desmembramento de redes têm sido conseguidas, não nos Estados Unidos ou por profissionais americanos, mas sim na Europa e no Extremo Oriente, em investigações autónomas das dos americanos. A verdade tem sido esta: a segurança da América está a dever mais aos europeus e asiáticos do que o contrário. Da mesma forma que gostaria muito de saber o que andou Bush a fazer durante as quatro horas que desapareceu a seguir a ter tido início o ataque às Twin Towers, também gostaria de saber que sucessos conseguiu, em concreto, a sua administração na luta contra o terrorismo.
O que verá, então, a direita europeia neste Presidente americano que justifique tamanha satisfação? Os célebres "valores morais", não vejo que outra coisa. O tal factor que, segundo as sondagens, terá sido o principal desequilibrador dos votos a favor de Bush. Será isso então que justifica o entusiasmo com que, por exemplo, Vasco Graça Moura exulta com a vitória de Bush "contra a Europa do politicamente correcto, contra a esquerda em geral... enfim, e isto dá-me um certo gozo interior, contra o dr. Mário Soares".
Gozo? Politicamente correcto? Mas será que cabe no índex maldito do politicamente correcto coisas como ser-se contra a criminalização do aborto e a pena de morte, ou ser-se a favor da separação entre o Estado e a religião, da diferenciação entre a taxa de imposto para ricos e para pobres, do direito à educação, à saúde e à assistência social para todos, independentemente das suas possibilidades financeiras? É que são estes, caso não tenham reparado, alguns dos "valores" que a direita cristã americana impôs nesta eleição.
Alguns comentadores de direita têm insistido em ver no desfecho das eleições americanas uma batalha por valores que a esquerda perdeu - o que lhes serve de argumento para exclamar, cheios de "gozo", que os valores da "velha esquerda" estão mortos e, enquanto não forem revistos, só a conduzirão às derrotas, hoje nos Estados Unidos, amanhã na Europa. Têm razão na análise, mas a lição que pretendem extrair é simplesmente amoral. Houve, de facto, uma batalha por valores nestas eleições americanas, e os valores emergentes da nova direita derrotaram os valores da velha esquerda. Mas ainda bem que houve essa batalha, que a esquerda preferiu o risco da separação das águas do que a tentação de se adaptar aos ventos hoje dominantes. Ainda bem que houve essa clarificação, mesmo que ela tenha deixado a América profundamente dividida ao meio, em termos que preocupam até os próprios vencedores. Mil vezes perder uma eleição do que perder a razão.
Todavia, o mais curioso é que Bush arrisca-se a desiludir este exército de fiéis, lá e cá. Não que, de repente, ele passe a preocupar-se seriamente com os mais fracos, com o ambiente ou com os direitos humanos. Mas já não precisa de manter seduzida a sua base de apoio da extrema-direita religiosa e sabe que só passará à História se daqui a quatro anos conseguir reunir e juntar de novo parte daquilo que a sua eleição dividiu. Já mostrou o seu conservadorismo, chegou a hora de mostrar a sua "compaixão".
Mesmo na frente externa, não é provável que tudo continue como antes. A aventura do Iraque retirou aos Estados Unidos capacidade de intervenção noutros lados - mesmo que necessária para a sua segurança. E o embuste sobre os motivos da guerra retirou-lhe a credibilidade necessária junto dos aliados (quem quererá alinhar em nova expedição militar comandada e ordenada por George W. Bush?). Como escreveu Fareed Zakaria, o editorialista principal da "Newsweek", "o segundo mandato de Bush vai ser diferente, mas não pelas boas razões. Será um mandato menos agressivo, menos unilateral, menos militante e menos arrogante na política externa. Não por uma mudança de ideias, mas porque a isso se vê a América hoje constrangida e, em larga medida, devido às políticas de Bush. A ironia e a tragédia do segundo mandato de Bush poderá muito bem vir a ser o facto de mesmo o uso da força, quando necessária - para enfrentar as ameaças da Coreia do Norte ou do Irão, por exemplo -, vir a revelar George W. Bush como um tigre de papel. Ele ameaçará não tolerar a posse de armas atómicas pela Coreia do Norte e tolerá-las-á. Insistirá que não consente que o Irão se torne uma potência nuclear e consenti-lo-á".
Pois, eis no que dá o unilateralismo arrogante, a tentativa de exportação universal dos valores morais ou da lei do xerife americano. Um mundo onde a "potência indispensável", tendo gasto o seu fogo e as suas energias em guerras erradas, acabou autodesarmada perante as guerras justas. Um mundo definitivamente mais perigoso. Qual será o gozo que a direita vê nisto?
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