novembro 05, 2004

God Bless America!



Por MIGUEL SOUSA TAVARES

Quem me lê regularmente sabe que desde há muito, creio que mesmo desde antes do 11 de Setembro de 2001, fui antevendo a reeleição de Bush. Na verdade, só tive algumas ligeiras dúvidas na própria terça-feira, quando os números inabituais de afluência às urnas nos Estados Unidos pareciam indiciar uma recuperação de última hora do campo democrata - se, como o previam os analistas, novos eleitores significassem mais eleitores democratas. Mas os analistas estavam errados: os novos eleitores votaram, afinal, maioritariamente nos republicanos, confirmando a tendência nacional a que Nixon chamou "a maioria silenciosa" que, quando fala, fala à direita.

O que se passou terça-feira nos Estados Unidos foi a consumação de um lento mas seguro deslizar da América para longe dos valores liberais que durante mais de duzentos anos foram responsáveis pela construção do mito da "land of the free". Desde que visitei pela primeira vez os Estados Unidos, em 1976, numa longa viagem de automóvel e "roulotte", costa a costa, muitas coisas mudaram no coração desse país que então me fascinou e seduziu. Mesmo nos estados do Sul, hoje, como tradicionalmente, bastião dos valores conservadores, respirava-se uma atmosfera de espaço, de liberdade e de respeito pela identidade e diferença alheia, que reflectiam afinal um outro valor intrínseco ao "cowboy country" e com o qual o Sul foi desbravado e construído: o direito de cada um escolher o seu caminho e a sua forma de estar e de viver, não incomodando os outros e sem que os outros o incomodassem. Julgo que o que mudou essencialmente, desde então, foi isso mesmo: uma maioria, dita "moral" e reclamando-se de uma legitimidade concedida por Deus, decretou um catálogo de pretensas virtudes a que chamam "valores" e que, aos poucos, foram impondo a toda a América e pretendendo impor a todo o mundo.

Essa revolução subterrânea da direita americana foi transformando os Estados Unidos num Estado confessional, exigindo do governo federal ou dos governos estaduais um papel de vigilante da moral e das virtudes que têm como boas e únicas aceitáveis. Lembro-me de, perante a ironia condescendente, começar a escrever sobre isto a propósito da perseguição aos fumadores - que, sob a capa de um caso de saúde pública, era, de facto e como o declarou sem subterfúgios uma comissão de inquérito do Congresso, "a moral issue". O problema não estava no facto de o maior produtor e vendedor de tabaco no mundo pretender, contraditoriamente, perseguir o consumo de tabaco. O problema principal era e é o carácter de cruzada da virtude contra o vício de que essa política se revestiu. Seguiu-se a cruzada igualmente moralista contra o "sexual arressment", uma e outra campanha conseguindo a perversão cívica de converter multidões de cidadãos banais em vigilantes da "moralidade" alheia. Uma nação de gente tolerante e liberal tem vindo lentamente a evoluir para uma nação de fiéis intransigentes, comandados por pregadores evangélicos. Não deixa de ser preocupante constatar que este é o sentido inverso em que tem evoluído, por exemplo, a sociedade civil do Irão dos "ayatholahs" - não há muito tempo atrás, no tempo de Jimmy Carter, visto como o país cujos valores e fundamentação religiosa do poder mais contrariavam os valores da democracia americana. Hoje, em 2004, as multidões que assistiam aos comícios de George Bush não gritavam "bravo!" nem "viva!", mas sim "amen" e "aleluia". Num momento de maior entusiasmo, o próprio Bush sentiu-se autorizado a declarar que às vezes "falava com Deus". Não admira que o Papa e Buttiglione, assim como os dirigentes teocráticos do Irão e a Casa de Saud, fossem seus apoiantes.

Com o "affaire" Lewinsky (para o qual os próprios democratas se deixaram arrastar sem medir as consequências da gravidade do que, antes de mais, estava em jogo - o direito à intimidade da vida pessoal de cada um, seja Presidente ou emigrante clandestino), a "maioria moral" dos Estados Unidos sentiu-se já suficientemente forte e incontestada para ditar as suas virtudes e leis ao próprio Presidente, castigando-o e humilhando-o aos olhos do mundo inteiro, com o autêntico apedrejamento em praça pública que foi a colocação na Internet dos mais íntimos detalhes da sua relação sexual com a jovem Lewinsky.

Em 2000, essa "maioria moral" - que, aritmeticamente, estava quase a sê-lo mas ainda não o era - teve de recorrer à batota na contagem de votos e à colaboração da maioria de extrema-direita do Supremo Tribunal para conseguir eleger o seu Presidente. Em quatro anos de mandato, o seu Presidente revelou-se o mais incompetente de toda a história americana. Pôs a economia num caos, perdeu centenas de milhares de empregos, desfez o sistema de segurança social e ameaça transformar o direito ao ensino e à saúde num privilégio de ricos, meteu os Estados Unidos numa guerra e ocupação do país errado, sem saída à vista e apenas com benefício para os amigos e família do Presidente envolvidos nos negócio de armas e de petróleo e, como o provou eloquentemente a provocadora aparição de Bin Laden quatro dias antes da eleição, não conseguiu qualquer progresso visível na luta contra o terrorismo, muito embora, para o tentar, tenha subvertido a lei internacional e a própria Constituição americana, em Guantanamo, nas prisões do Iraque, e mesmo em território americano, graças ao regime de suspensão de direitos civis instituído pelo "Patriot Act". E, sobre tudo isto, que são os resultados práticos da sua administração, confirmou ainda a sua imensa ignorância, o seu desnorte e paralisia em momentos de crise como o 11 de Setembro, a sua incapacidade de ter qualquer ideia que vá além da extensão de uma frase que caiba numa linha de teleponto, e a sua falta de escrúpulos em mentir olhos nos olhos, forjar provas, deturpar informações, censurar ou falsificar relatórios científicos, sempre e quando isso convier aos seus "valores". E foi por esses "valores" e nada mais que a crescente sociedade civil americana, que faz deles profissão de fé, o reelegeu - agora sem precisar sequer de fazer batota. Porque, hoje sim, eles são a maioria que vai desenhando a nova face da América, outrora liberal, e refazendo um mapa político que remete preocupantemente para o mapa anterior à Guerra da Secessão.

Ao contrário do que jubilosamente se apressou a dizer essa jovem secretária de Estado do PP, que era para ser da Defesa e acabou por ser da Cultura, a vitória de Bush não implica que "a esquerda americana e europeia tenham de rever os seus valores". Porque quem tem valores, quem verdadeiramente tem valores, não os revê por contingência ou conveniência eleitoral - e, ao menos nisso, Bush foi mais coerente do que nossa apressada secretária. Acontece, sim, é que os valores hoje dominantes na América não são os nossos - não apenas os da esquerda europeia, mas os de uma maioria substancial, sólida e antiga, de europeus que são tributários da história de Atenas e não da de Esparta. Perceba-o ou não a senhora, na Europa em que nos revemos, não discriminamos os homossexuais, não colocamos o aborto na clandestinidade, não defendemos que os ricos paguem os mesmos impostos que os pobres, não defendemos a liquidação da função social do Estado, não misturamos a política com Deus, não aceitamos o sistema penal de Guantanamo, não defendemos a pena de morte e, além do mais, não invocamos nenhum mandato moral ou divino para impor estes valores aos outros.

Em 1976, entre mim e o homem que comigo bebia um café numa bomba de gasolina junto a Flaggstaff, no Arizona, havia a crença comum de que a liberdade não era apenas aquela de que cada um de nós gozava, mas também a de que os outros, quaisquer outros, podiam gozar: a minha liberdade só existe enquanto existir a liberdade do outro. Hoje, seguramente que entre mim e o americano anónimo de Flaggstaff existem muito poucos valores comuns. Ele mudou os dele, eu não faço tenções de mudar os meus. Apenas, e embora seja parte ilegítima na matéria, anseio pelo dia em que a América volte a ser a pátria da liberdade. Porque tenho saudades de Flaggstaff.