dezembro 21, 2004

Circulação Zero



por JOÃO UBALDO RIBEIRO

Têm aparecido nos jornais, com certa freqüência, excelentes notícias sobre como algumas cidades brasileiras vêm minorando de forma notável seus problemas de segurança e violência, através de medidas singelas e de fácil execução. Tão marcante parece o êxito dessas providências que possivelmente serão propostas para outras cidades. Ou impostas, o que se pratica muito aqui, pois que vivemos numa ditadura, apenas do tipo “com direito a chiar” — se bem que estejam querendo tirá-lo, mas acho que vão deixá-lo de enfeite, aqui e ali, até porque cai sempre bem para mostrar às visitas e nas inspeções e classificações a que estão sempre nos submetendo.

Vocês devem ter visto também. Refiro-me ao toque de recolher. Não conheço pormenores das pioneiras experiências, mas sei que são basicamente o que o nome geral indica. Fecha-se tudo, vamos dizer, às onze horas da noite e todo mundo vai para casa. Nos fins de semana, estica-se um bocadinho o horário e a gandaia corre solta, em restaurantes, cinemas, teatros e outros antros de pecaminosidade, até as doze. Leio aqui que o sucesso tem sido indescritível, praticamente ninguém mais assalta nem mata ninguém, a paz é total.

Incrível que solução tão óbvia tenha escapado até agora, por exemplo, às autoridades de cidades como o Rio e São Paulo. Uma das razões, infelizmente, haverá de ter sido a ganância de donos de restaurantes e casas de diversão, que se recusam a ver diminuídos seus lucros astronômicos, mesmo em benefício da coletividade. “É a noite que reclama”, alegam deleteriamente. Que noite? E a alegria de ficar em casa, assistindo à tevê de alto nível que nos é oferecida, na paz do convívio familiar com a mulher, dois netos, o filho mais novo adultescente, o mais velho desempregado, a mais nova descasada e o namorado dela, embora forçando um pouco o espaço do apartamento de dois quartos? E a economia que se faz, deixando de encarar programas frustrantes, comida cara, shows de baixa qualidade e flanelinhas plenipotenciários?

Claro, com certeza vem aí o Circulação Zero. Não no começo, devido às resistências à mudança, naturais em quaisquer circunstâncias e ainda mais nessas, que se atrelam a vultosos interesses. Mas a evolução natural dos acontecimentos levará a ele, novo programa de governo, para o qual já ofereço de graça o slogan “Na toca, Brasil!”, com um nacionalíssimo tatupeba de símbolo, posando à entrada de seu moderno buraco, junto às grades, à câmara de circuito interno de tevê e o segurança, bem atrás da cerca eletrificada.

A implantação do esquema deverá ser gradual. Imagino que, no começo, poderá haver rodízio, como o dos carros em São Paulo. Os cidadãos cujas carteiras de identidade tiverem números pares poderão sair nas noites de segunda, quarta e sexta, com alternâncias nos fins de semana. Ou algo assim, somos muito bons na organização desse tipo de coisa, embora as dificuldades para a implantação do sistema possam revelar-se insuperáveis, já que os problemas seriam de todo tipo, até nos casos em que marido e mulher ou, muito pior, namorado e namorada, tivessem incompatibilidade de números.

De qualquer forma, a discussão é acadêmica, porque, diante da nova realidade, o crime reagiria. Já que ninguém estará mais na rua depois das onze, assaltos, homicídios e ilícitos diversos hoje favorecidos pelas altas horas em que muitos provocadoramente circulam, mudarão. Os bandidos adiantarão seus relógios — não sei bem quantas horas, por falta de familiaridade com o métier . O resultado disso é o começo da evolução que previ acima. O cedo vai ficar cada vez mais tarde, o toque de recolher vai passar das 11 para as 10 para as 9 e, finalmente, chegará às 18 ou 19, talvez, a depender do horário de verão.

Pronto, melhor ninguém sair mais à noite. Só vou querer ver as caras dos assaltantes, assassinos e motoristas bêbados. Será um baque na criminalidade, vocês têm de admitir, talvez mais contundente do que a recente proibição, que espero não tenha sido esquecida como tantas outras medidas de vasto alcance, da venda de papel para fazer cigarros — agora quem vivia desse comércio imundo que vá vender cola de cheirar a crianças, o que é ainda amplamente permitido, e abandone a ilegalidade.

No tempo em que eu estudava marxismo, achava que ia entender Hegel (aliás, alô, comunistada d’antanho: onde é que tem “tese, antítese e síntese” escritas na obra de Hegel, que eu encarei como um condenado do Santo Ofício, nunca topei com elas e até hoje tenho trauma?) e conseguiria ser militante do Partidão, duas impossibilidades que agora sei absolutas, repetia-se muito, em qualquer lugar onde houvesse um dos abundantes teóricos da patota, que Marx botou a dialética de Hegel de cabeça para baixo. Ou de cabeça para cima, não lembro bem, pretendo na velhice experimentar as grandes alegrias da ignorância, no que a misericordiosa falta de memória vem ajudando. Enfim, Marx era um retado, pegou o enfoque dialético e o revirou, vamos dizer.

É o que o gênio brasileiro acaba de conseguir, ajudado pela sorte que sempre tivemos como povo. Reviramos brilhantemente o equacionamento de um grave problema e assim o solucionamos para sempre. Agora que a Justiça está, como a estrutura fiscal, a previdenciária etc., reformadíssima, tinindo em ponto de bala, faltam instalações para botar em cana as multidões que vão ser presas. Mas, ora, mas é claro, muita gente já tinha visto isso: inverte-se a equação, prende-se de vez o povo e solta-se a bandidagem. Circulação Zero. Na toca, Brasil! E as Forças Armadas finalmente poderão colaborar em algo que são treinadas para fazer, ou seja, controlar toques de recolher em áreas ocupadas, elementar. Quem sair toma um tiro de canhão. Só muita má vontade para alegar falta de segurança, até porque o canhão deverá ser participativo.