fevereiro 21, 2005

Não faça nada você também



Por João Ubaldo Ribeiro

Como se sabe, os escritores profissionais, sofrida laia em que as Parcas me incluíram, certamente por graves malfeitorias cometidas em encarnações passadas, não costumam conversar sobre literatura. Se algum de vocês conseguisse transformar-se por algum tempo na proverbial mosquinha espiã e bisbilhotasse a mesa de bar onde alguns estivessem congregados, notaria logo que a maior parte, bem como a dos outros artistas que vivem de suas artes, conversa sobre como garantir o supermercado da semana e armar defesas para não trabalhar de graça, ou em troca dos famosos pagamentos simbólicos que todos acham apropriados para eles, embora, como já tive oportunidade de observar aqui algumas vezes, os estabelecimentos comerciais se recusem a aceitar símbolos como moeda.

Não é outra a razão porque, instado por amigos comiserados, venho tentando achar idéias para escrever um livrinho de auto-ajuda, pois me dizem que assim é possível o autor conseguir juntar os caraminguás necessários para trocar o computador mesozóico que todos os dias lhe desperta ímpetos homicidas e o leva a fazer planos de furtar estoques de tranqüilizantes da farmácia da esquina. Mas, mesmo espremendo os miolos com afinco, não encontrei o que pudesse escrever, basicamente devido ao fato de que não sei nada. Quer dizer, sei dar nós de gravata medíocres, que penosamente aprendi na Faculdade de Direito da Bahia de antigamente, sei pegar siris com uma forquilha se os siris colaborarem e posso redigir algumas páginas sobre a boa convivência com uma barriga cujo volume insiste em competir com o do Pão de Açúcar. Cheguei até em pensar no título Sou barrigudo e sou feliz , mas algo me diz que não faria grande sucesso, até porque imagino que as únicas pessoas barrigudas normalmente felizes são as grávidas e, ao contrário do governador da Califórnia, nunca fiquei grávido e nunca tive vontade de ficar.

Agora, contudo, depois de minha estada habitual em Itaparica, volto com esperanças renovadas. Minha ilha não cessa de me dadivar uma prenda atrás da outra e, desta feita, alimento a séria intenção de não somente escrever um livro de auto-ajuda como até, pois não custa sonhar, vir a estabelecer um próspero negócio, inicialmente modesto, mas depois até capaz de expandir-se e — quem sabe? — chegar mesmo a conceder franquias ( franchising , perdão, Barra da Tijuca). Quem me deu a idéia foi um amigo meu, o ex-peixeiro Vavá Major, conceituado cidadão itaparicano, que procurei ao chegar ao Mercado Municipal e não encontrei. Perguntei sobre o paradeiro dele e recebi a notícia de que vendera o negócio, amealhara uns trocadinhos, conseguira uma aposentadoriazinha — não de tope presidencial, é claro, mas suficiente para suas modestas necessidades — e agora não fazia nada. Como assim, nada? Nada mesmo? Nada, me responderam. Major é um portento, não faz nada mesmo, mesmo, absolutamente nada.

Custei a crer. Claro que ele tinha que estar fazendo alguma coisa, nem que fosse jogar dominó. Mas Pretinho, amigo comum e vizinho dele no Alto de Santo Antônio, me deu uma resposta categórica. Se dormir, comer e ficar bestando, sentado na escadaria da igreja, era ocupação, eu podia dizer que ele estava fazendo isso. Ou então que se considerasse ocupação prosar com quem se dispusesse, pois Vavá sempre foi muito reputado pelo seu bom palestrar e sempre encarou qualquer assunto com disposição e espírito. Bem verdade que volta e meia é um tantinho politicamente incorreto, como da vez em que, dirigindo-se a um cavalheiro que se metia demasiadamente a porreta, numa roda de conversação, disse: “E você sabe de nada, escargô?” Pegou um pouco mal, porque o camarada padecia de acentuada cifose, ou seja, era corcunda, no falar antigo. Acresça-se a circunstância de que, em Itaparica, a pronúncia costumeira de “escargô” é “sicagou”, tema para lingüistas e filólogos, mas, em termos mais imediatos, fundada razão para ofensa, tanto assim que tiveram que segurar o corcunda para ele não dar umas peixeiradas em Major.

Ou seja, o que me era garantido era que Vavá agora não fazia absolutamente nada. Apesar de ser tão amigo de Pretinho que até boto fé nos pesos que ele usa para o pescado que vende, permaneci com uma ponta de dúvida. Não era possível que algo tão buscado por tanta gente tivesse sido alcançado com tanta facilidade. Era o nirvana instantâneo (já estou aqui tentando minhocar o título do livro), sem necessidade de ascese, meditação, jejum e outros padecimentos que compõem o ad augusta, per angustia , o alcançar dos grandes píncaros por caminhos árduos. Continuei na dúvida e resolvi que daria um pulinho à escada da igreja do Alto, para conferir a história. Não precisei. Ele mesmo apareceu para me fazer uma rápida visita de cortesia. Sim, era verdade, agora não fazia nada. E me explicou tudo tão bem que vi logo a possibilidade de escrever um livro divulgando a técnica e a experiência dele. Ele concordou, contanto, é claro, que não envolvesse trabalho, à exceção de falar e conversar. Para mim já bastava, era uma descoberta preciosíssima, proeza de gênio. Ele sempre pensara naquilo, fora a culminação de um longo processo, ou tudo aparecera de repente, numa iluminação? Tinha sido de repente, fora uma inspiração que lhe viera. Ah, que grande revelação para os leitores de meu livro, qual fora a fonte da inspiração?

— Eu me inspirei no governo — disse ele. — Não faço nada, nada, nada, nadinha mesmo. Nem nesse serviço que você vai começar.

— Bom, nadinha, nadinha não, você disse que topava falar.

— Mas eu não disse que me inspirei no governo?