junho 29, 2004

Uma pausa para reflexão… com o Jabor!

‘Pelé eterno’ me trouxe a infância de volta

Arnaldo Jabor

Eu não entendo de futebol. Onde eu morava, na Urca, comprido como uma cegonha triste (que aliás era meu apelido), havia vários times de praia, com belas camisas coloridas. Eu era fanático pelo Ipiranga, de uniforme verde e vermelho, que eu almejava ostentar um dia, de preferência se Silvinha, moreninha de olhos verdes, estivesse na amurada me vendo driblar adversários, dando-lhes chapéus sucessivos e entrando triunfalmente pelo gol do La Vai Bola, temido time do Leme. Mas faltava-me agressividade, faltava-me a virilidade dos garotos da rua, duros e secos, porradeiros e xingadores, faltava-me a natural destreza das panturrilhas musculosas. Por isso, eu era o eterno aspirante a uma vaga, rondando as convocações do time, quando as camisas eram distribuídas pelo capitão. Em uma tarde de domingo, faltou o ponta-esquerda titular do Ipiranga, que ficara de castigo em casa por ter espirrado, de sua varanda, tintas de caneta Parker na cabeça dos passantes. Eu me acendi de esperança. O capitão do time, o temido Acreano, me examinou de longe com as camisas na mão. Meio contrafeito, como quem faz um favor, atirou-me a almejada camiseta. Vesti-a com o coração aos pulos, sentindo que uma vida nova começava, espiando pelo canto do olho as meninas já sentadas na amurada, Silvinha entre elas, em cochichos e risos com suas blusinhas de “ban-lon” e saias plissadas. Desfilei por ali, sem olhá-las diretamente, com a naturalidade de um profissional, chegando mesmo a tentar uma discreta embaixadinha.

O juiz já estava de apito na boca, e era o famoso Mário Vianna, que morava ali na orla e, às vezes, brincava de apitar jogos de garotos, como aquele, entre o Ipiranga e o Arsenal, com suas listas azuis e douradas. Eu, de mãos na cintura e tornozeleira, firmava um olho na bola e o outro em Silvinha, concentrando energia para dar o melhor de mim e sair da condição de “babaca”, classe onde eu vivia, para entrar na categoria dos fortes, dos brutos.



Foi aí que minha vida começou a mudar. O juiz ia apitar quando se ouviu um alarido de “pára, pára”, cobrindo a chegada esbaforida de Porcolino, o festejado ponta-esquerda do Ipiranga, que fugira de casa e corria para sua posição de titular. Em um segundo, o capitão Acreano tirou-me a camisa e entregou-a a Porcolino, famoso por um raro gol de bicicleta que fizera contra um time visitante.

Parecia que me tiravam a pele, quando arranquei a camisa verde e rubra; sentia-me nu e arrojado de volta à classe dos “otários”, fugindo do olhar de Silvinha, que, certamente, me fitava com desprezo, enquanto eu corria para o mar, onde saí nadando para esconder, na água salgada, o choro da vergonha.

Daí para a frente, foram humilhações sucessivas no futebol. Nunca integrei o primeiro time de nada no colégio de padres, nunca recebi uma taça, nunca arranquei poeira do chão com chuteiras masculinas e ferozes que rangiam em disputadas partidas, nunca conheci a alegria dos aplausos suados, descabelados, nas manhãs azuis dos padres jesuítas.

Nessa época, meu avô me levava ao Maracanã, ele, fantástico malandro carioca que era amigo de Danilo do Vasco, que morava na mesma rua do Méier. O estádio ainda era novo e tinha muitos amistosos. Creio que foi durante um jogo entre o Portsmouth inglês e uma seleção nacional que tive meu contato com o terror. Até hoje sinto o arrepio, quando vi que meu destino de perna-de-pau estava traçado, não só no futebol mas talvez na vida, pois percebi com pânico que, enquanto todo mundo na arquibancada olhava o jogo, eu olhava os torcedores olhando o jogo. Percebi que estava vendo suas reações, seus gritos e palavrões, seus olhos e bocas desdentadas atentíssimos ao campo, enquanto eu os observava de fora, como se fosse de outro planeta. (Os negros eram mais negros na época e quase ninguém tinha dente). Essa sensação de estar “fora” sempre me acompanhou pela vida. Nessa época, como um mecanismo de defesa, passei a ostentar uma indiferença superior ao esporte, o que me cortava a emoção que eu invejava nos torcedores.



Até que um dia meu avô me levou para ver Vasco x Bangu, um clássico da época. Foi então que tive uma visão mágica e salvadora. No meio do jogo, de repente, um jogador mulato de camisa listrada de vermelho e branco arrancou numa corrida extraordinária, driblou vários “joões”, deu chapéus nos half-backs , executando um balé de volteios ferozes e sutis como um cossaco dançante, levou a bola colada no pé, como um cachorrinho dócil, e colocou-a no canto da trave, sob o olhar abobalhado do goleiro. Nesse instante, fui tomado por uma funda emoção e entendi o que era arte. Não só do futebol — mas arte mesmo. Gritavam todos: “Zizinho, Zizinho!!!”... Eu tinha sentido a beleza de uma obra feita de ar, movimento, engano e dança, feita de fúria e delicadeza, de velocidade e lentidão. Por segundos, Zizinho me fez esquecer de mim mesmo e lembro com grande saudade que, por alguns segundos, eu fui como todo mundo, igual, perdido na massa pobre do tempo, sentindo a alegria da normalidade, sem medo, sem tremor, antes que a minha solidão melancólica viesse se reinstalar.

Muitos anos depois, eu assisti a uma entrevista de Pelé, onde ele declarou : “Nunca vi ninguém jogar tão bem quanto Zizinho!”.

Nesse instante, Pelé se ligou a mim naquela tarde remota do Maracanã. Ele também vira o gênio. Eu me senti remido por Pelé, que é da minha idade. A partir daí, acompanho sua genialidade na vida e no campo. Ontem, fui ver o extraordinário filme de Anibal Massaini — “Pelé eterno” — e senti a mesma coisa da infância, ao lado de meu avô, no Maracanã: esqueci-me de mim. Estava de novo diante da beleza que vi em Zizinho. Não estava assistindo a um jogador apenas. A sensação é o mesmo êxtase de se ver uma exposição de Picasso ou, sei lá, Shakespeare. Pelé não é apenas um atleta, é um escultor do ar, um grande poeta de gestos e músculos. Ele não busca o gol apenas, busca a felicidade da beleza. Ele viveu a vitória total e consola milhões de fracassados como eu, de quem tiraram a camisa verde e rubra do Ipiranga em minha trêmula infância de praia.

(C) O GLOBO