agosto 22, 2004

Grande Otelo, de último aluno a primeiro ator

De nada adiantou a Grande Otelo ter caído nas graças de Orson Welles. Nem ter emprestado seu talento a uma centena de filmes e a outros tantos espetáculos. E, muito menos, ter ajudado a criar a Atlântida. O descaso com que o ator vinha sendo tratado nos anos antes de morrer, em 1993, reflete-se hoje no estado em que se encontra seu acervo. Não é preciso mexer muito nele para encontrar metáforas do esquecimento: o troféu que Otelo receberia em Nantes, na França, caso não tivesse tido um infarto no aeroporto de Paris, está quebrado. Dele, resta apenas o pedestal em que se lê “A Grande Otelo, pour sa contribuition au cinéma des 3 continents”. E um desenho daquele que devia ser o troféu inteiro.



Sem ter onde guardá-lo e muito menos como catalogar o acervo, Carlos, Pratinha, Jaciara e Mário, os quatro filhos vivos de Otelo acabaram deixando-o no apartamento de um amigo da família, na Tijuca. E nunca mais ninguém soube o que havia naquelas 60 caixas de papelão. Até agora.

Acervo será catalogado e digitalizado

Na sexta-feira retrasada, tudo o que Otelo guardava em seu apartamento em Copacabana antes de morrer saiu do quartinho onde passou os últimos anos e foi para a Sarau, produtora que, a partir de agora, cuidará, graças a um patrocínio de R$ 249 mil da Petrobras, da conservação, catalogação e digitalização do acervo. A mudança foi registrada pelo cineasta Evaldo Mocarzel, que está trabalhando num documentário sobre Otelo. E pelo GLOBO, que também acompanhou esta semana a abertura das caixas e o primeiro levantamento feito por Andréa Alves e Ana Luisa Lima, sócias da Sarau, do seu conteúdo.

Depois de dois dias, ficou claro que, apesar de muito cansativo — os filhos não se preocuparam em organizar o acervo antes de encaixotá-lo — o trabalho promete ser gratificante. Não há uma só faceta de Otelo que não possa ser esmiuçada com a ajuda do acervo. A começar por sua vida pessoal. Na caixa reservada às fitas cassetes, ao lado de gravações de artistas queridos a Otelo, como Carmen Miranda e Nelson Gonçalves, há dezenas de entrevistas. Numa delas, dada ao pesquisador Jairo Severiano, o ator explica como, de Sebastião Bernardes de Souza Prata, passou a ser chamado Grande Otelo. Tudo começou, como narra a Severiano, em São Paulo.

“Como Abigail, filha de Yara Isabel, que tinha me adotado, era nova, eu costumava acompanhá-la nas aulas de canto. De tanto ouvi-la, aprendi ‘La bohême’ e o maestro me testou, disse que eu era um tenorinho e que um dia cantaria a ópera ‘Otelo’”, lembra o ator, que, dali para frente, passou a ser chamado de Otelo. “Quando vim para o Rio e passei a trabalhar com Jardel Jércolis, ele achou que Pequeno Otelo não chamaria a atenção, mas que se me anunciasse como Grande Otelo e depois aparecesse eu, pequeno, isso já era uma piada”.

Não só em entrevistas, mas sempre que podia, Otelo tentava organizar a sua trajetória. Mais do que um currículo, o ator escrevia esboços de autobiografia. No acervo, há dezenas de anotações. Das mais prolixas, em que Otelo lembra o que fez ano a ano, às mais concisas, como uma dividida em décadas escrita em 20 de maio de 1986, em que lista as passagens pela Companhia Negra de Revistas (década de 20), Companhia Jardel Jércolis (década de 30), Cassino da Urca (década de 40), entre outras.

Graças a estes esboços, o pesquisador Sérgio Cabral, que foi convidado pela Sarau para escrever a biografia do Otelo, vai poder tirar dúvidas sobre a trajetória do artista. Em um de seus textos, Otelo esclarece, por exemplo, que a data que aparece em sua certidão como sendo a do nascimento é, na verdade, a do batismo.



“Não sei a data exata em que nasceu o Bastiãozinho”, escreve ele em terceira pessoa. “Sei que nasceu e foi batizado, por isso o aniversário dele é no dia do batismo — 18 de outubro — lá por volta de 1915, na cidade de S. Pedro de Uberabinha”.

Nos esboços, Otelo fala de sua passagem pelo Liceu Coração de Jesus, em São Paulo. Mas não entra em detalhes, limitando-se a dizer que “esta é outra história”. Talvez estivesse se referindo ao fato de não ser exatamente um bom aluno, como atesta o boletim de 1933. Com exceção de um dez em química, de um oito em inglês e de um sete em ginástica, as notas variavam entre zero e 60, fazendo dele, numa turma de 37 alunos, o trigésimo-sexto.

Roberta Oliveira/O Globo