Realismo nacional
por JOÃO UBALDO RIBEIRO
Vivendo e não aprendendo. Volta e meia, se bem deva ressaltar que é nas ocasiões em que me acho provocado ou convocado, tenho uns ataques de indignação a que dou vazão por escrito. E aí, no dia da publicação, retorna a sensação que me acompanha desde que peguei experiência em jornalismo: coisa mais besta, não adianta nada ficar falando ou reclamando, nunca adiantou. Sim, claro que, em oportunidades especiais (ou “tópicas” — tenho lido muito esta palavra e não sei bem o que querem dizer com ela, mas soa chique e resolvi usá-la, também sou filho de Deus), escrever sobre algum problema ajudou a resolvê-lo. Mas somente o problema, não a situação que o causou ou o estado de coisas em que sempre vivemos, embora piorado nos últimos anos. (Não estou falando mal do governo agora; olá, pessoal que adora ler nas entrelinhas, não tem entrelinha nenhuma, não estou falando mal do governo, estou falando da vida em geral nos anos mais recentes, garanto a vocês.)
Por mais que tente e faça conferências aos amigos e a mim mesmo sobre como é burrice ficar dando murro em ponta de faca, em vez de cuidar da vida como todo mundo de juízo, insisto nos maus hábitos. Dei até para achar que o dr. Fernando Henrique estava coberto de razão em descrever e anatematizar a categoria dos catastrofistas. Como muitas vítimas de certas enfermidades incapacitantes, passei por um longo período de negação, mas a verdade é que me descobri um catastrofista. Que me reste pelo menos a coragem de discutir em público problema tão toldado pelo preconceito, considerado tabu e até mantido em sigilo pelos familiares do padecente. O fato é inegável, eu sou um catastrofista e não sei se já criaram os Catastrofistas Anônimos, mas, se criaram, bem que eu podia freqüentá-los.
Vou combater o catastrofismo, não chegarei ao fundo do poço. E a Providência, sempre atenta aos necessitados, já me socorreu, acho que nem precisarei de outra ajuda. No domingo passado, encontrava-me eu no boteco, na distinta companhia de diversos notáveis cujos nomes a modéstia me impede de citar, principiando um comício sobre a decisão que, segundo li nos jornais, proíbe que as prestações de crediários sejam pagas em dinheiro. Vão ter que ser pagas em cheque, cartão, qualquer instrumento bancário. Isso invalida o curso livre da moeda nacional como meio de pagamento e obriga os pobres a ter contas bancárias. Todos pagarão taxas bancárias e CPMF, para quitar suas prestações. Coisa absurda, comecei a blaterar, mais uma manobra para dar dinheiro aos bancos e aumentar a arrecadação. Mas, assim que comecei a falar, fui gentilmente interrompido por um companheiro, que me fez ver não ser bom para minha pressão arterial ficar tão indignado assim. Naquele mesmo domingo, esta coluna já tinha saído meio belicosa. Nesse passo eu ia acabar tendo uma morte fora de moda, por apoplexia. Já pensara eu em que notícia desairosa? “Imortal morre de apoplexia.” Ia pegar mal, apoplexia não se usa mais. Muito chato para a imagem da Academia, ainda mais a troco de nada.
— Me diz uma coisa — falou o sábio companheiro —, você está vendo alguém ligando para esses negócios que deixam você tão fora de seu normal, que é tão bem-humorado? Alguém está ligando?
— Eu estou ligando, muita gente está ligando, o povo todo está ligando, qualquer um pode constatar isso.
— Você me desculpe, eu tenho grande respeito intelectual por você, não vai nisto nenhum demérito, mas é o contrário do que você disse. O que você pode constatar é que ninguém está ligando.
— Não concordo. Toda hora alguém fala.
— Fala! Isso é outra coisa. Mas ligar efetivamente, não. É uma boa ser revoltado, mas ser revoltoso dá muito trabalho. O Brasil é assim, sempre foi assim, vai continuar assim, a nossa é esta mesmo, está todo mundo satisfeito.
— Não está! Isso é uma completa maluquice sua.
— Desculpe, mas a maluquice é sua. Quando eu digo “todo mundo”, claro que estou generalizando, há sempre alguns, desculpe, um tanto fora de prumo como você, ou que estão com problemas e reclamam, mas ninguém está ligando, mete isso na cabeça de uma vez e pára de te aporrinhar à toa. Se o problema toca no sujeito, aí é diferente, aí ele vira bicho, vai brigar, entra na Justiça, faz carta pro jornal e promove até passeata. Que, por sinal, para muita gente aqui no Rio, é um programaço, até a azaração come solta. Mas, se não incomodar ele, pode deixar tudo aí, que está ótimo. Olha aí o boteco, todo mundo numa boa, não tem ninguém preocupado com merda de liberdade de imprensa nenhuma, nem com CPMF, todo mundo sabe que é isso mesmo e que o negócio é se arrumar, o exemplo começa bem em cima. Pronto, acho que consegui resumir. Enfia isto na cabeça, de uma vez por todas: o lema de todo mundo é “o único problema é o meu e o que interessa na vida é me arrumar”. Eu sei que você é idealista e tal, mas não é burro, tem que se curvar à realidade. E a realidade é essa, o negócio de todo mundo é se fazer, o brasileiro é assim. Até no seu caso, pode ter certeza de que muita gente acha que você está levando alguma vantagem nessas tuas posições. Ou então é inocente útil ou otário, o povo todo acha que o que interessa é se fazer. E para mim está certo, você sabe? O que é esta vida? É a que é que a gente leva. O povo está certo, o negócio é se fazer, porque é aqui que se vive e, se a gente não aproveitar agora, enterrado é que não vai aproveitar. Sacou, meu paladino? Como é, não vai mexer os pauzinhos pra levar a grana de nenhum prêmio literário este ano, não? Não vem me dizer que não se mexe pauzinho para ganhar esses prêmios, também assim você já está babacão demais. O cara, pra se dar bem...
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor
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