Amigo, Adeus
Carlos Paredes deixa ao Mundo um legado único de excelência na composição e interpretação de um instrumento que cresceu com ele próprio: a guitarra portuguesa.
"A mensagem de Carlos Paredes une as pessoas em vez de as dividir".
"Carlos Paredes é, para mim, uma referência humana e cultural, juntamente com Adriano Correia de Oliveira, representa o melhor que há de nós em termos humanos e culturais".
Carlos do Carmo.
A noticia
A homenagem
Instituto Camões
João de Freitas Branco
"Carlos Paredes é, para mim, uma referência humana e cultural, juntamente com Adriano Correia de Oliveira, representa o melhor que há de nós em termos humanos e culturais".
Carlos do Carmo.
A noticia
A homenagem
Instituto Camões
O Carlos no Haiti
Nunca esperei que o Carlos Paredes morresse. A morte é sempre um imponderável, sabe-se possível, mas o Carlos era daquele tipo de personagens que a gente cree imortais.
Não posso dizer que conheci primeiro o Carlos. Foi ao contrário. Ele conheceu-me primeiro, quando eu ainda não tinha nascido, porque foi um dos maiores amigos dos meus pais e conheceu-me na barriga da minha mãe. O Carlos era uma presença normal lá em casa. Era como um bibelot. Vinha, sentava-se à mesa, jantava, e tocava guitarra. E a gente ouvia. Ouvia. Escutava durante horas, até que ele se cansava, dizia qualquer coisa de chegar a horas ao hospital de S. José e ia embora. E eu pensava que ele era um doente crónico até que um dia o meu pai me explicou que o Carlos trabalhava como arquivista de radiografias no hospital e eu preguntei-lhe como era possivel se sabia tocar guitarra. E o meu pai explicou-me que era por causa do fascismo que havia em Portugal nessa altura. Eu tinha sete anos de idade quando ele me explicou isso. E por causa do Carlos Paredes comecei a perceber que o fascismo era uma merda porque se havia um guitarrista que tocava como ele e arquivava radiografias e não podia tocar quando quería, então o fascismo era uma merda.
Mas eu era uma criança então. E muitos anos mais tarde acabei por descobrir – de novo – que ele continuava em São José a pesar de que o fascismo já tinha acabado e nós em Portugal já estavamos em democracia. Foi então quando percebi que a pesar de tudo, a direita continuava no poder e para o Carlos isso significava continuar a arquivar radiografias e tocar em casa dos amigos.
Uma noite, muitos anos depois, no Haití, no rescaldo de uma das maiores massacres que até agora pude presenciar escutei uma guitarra. Não era revolucionaria, era portuguesa. O seu som era inconfundivel. Gritos arrancados às cordas que surgiam dum autofalente dum 4X4 estacionado diante dum armazém no coração de Port-au-Prince. Só o Carlos podia tocar aquilo, disse-me, não há outro no mundo que o faça. Aproximei-me. Um individuo – branco – parecia em transe escutando as guitarradas. Palavra puxa palavra. Era portugués. O João. O único portugués que vivia no Haití. Comerciante, claro está. Como os descobridores. Tinha conquistado o Haití não com a espingarda mas sim com a guitarrada pura do Carlos Paredes e tinha os haitianos hipnotizados desde então. E ali ficamos. Os dois. A chorar como uma Madalena. Como agora ele deve estar. E estou eu. A vida é uma merda. Às vezes.
Rui Ferreira.
Nunca esperei que o Carlos Paredes morresse. A morte é sempre um imponderável, sabe-se possível, mas o Carlos era daquele tipo de personagens que a gente cree imortais.
Não posso dizer que conheci primeiro o Carlos. Foi ao contrário. Ele conheceu-me primeiro, quando eu ainda não tinha nascido, porque foi um dos maiores amigos dos meus pais e conheceu-me na barriga da minha mãe. O Carlos era uma presença normal lá em casa. Era como um bibelot. Vinha, sentava-se à mesa, jantava, e tocava guitarra. E a gente ouvia. Ouvia. Escutava durante horas, até que ele se cansava, dizia qualquer coisa de chegar a horas ao hospital de S. José e ia embora. E eu pensava que ele era um doente crónico até que um dia o meu pai me explicou que o Carlos trabalhava como arquivista de radiografias no hospital e eu preguntei-lhe como era possivel se sabia tocar guitarra. E o meu pai explicou-me que era por causa do fascismo que havia em Portugal nessa altura. Eu tinha sete anos de idade quando ele me explicou isso. E por causa do Carlos Paredes comecei a perceber que o fascismo era uma merda porque se havia um guitarrista que tocava como ele e arquivava radiografias e não podia tocar quando quería, então o fascismo era uma merda.
Mas eu era uma criança então. E muitos anos mais tarde acabei por descobrir – de novo – que ele continuava em São José a pesar de que o fascismo já tinha acabado e nós em Portugal já estavamos em democracia. Foi então quando percebi que a pesar de tudo, a direita continuava no poder e para o Carlos isso significava continuar a arquivar radiografias e tocar em casa dos amigos.
Uma noite, muitos anos depois, no Haití, no rescaldo de uma das maiores massacres que até agora pude presenciar escutei uma guitarra. Não era revolucionaria, era portuguesa. O seu som era inconfundivel. Gritos arrancados às cordas que surgiam dum autofalente dum 4X4 estacionado diante dum armazém no coração de Port-au-Prince. Só o Carlos podia tocar aquilo, disse-me, não há outro no mundo que o faça. Aproximei-me. Um individuo – branco – parecia em transe escutando as guitarradas. Palavra puxa palavra. Era portugués. O João. O único portugués que vivia no Haití. Comerciante, claro está. Como os descobridores. Tinha conquistado o Haití não com a espingarda mas sim com a guitarrada pura do Carlos Paredes e tinha os haitianos hipnotizados desde então. E ali ficamos. Os dois. A chorar como uma Madalena. Como agora ele deve estar. E estou eu. A vida é uma merda. Às vezes.
Rui Ferreira.
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