outubro 15, 2004

Sobreviverá o Mundo a Mais Quatro Anos de Bush?



por MIGUEL SOUSA TAVARES

Numa fotografia divulgada há semanas pela Associated Press, vê-se o Presidente Bush cumprimentando Santana Lopes durante uma cerimónia de recepção aos dirigentes mundiais presentes na abertura da 50ª sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. À direita da fotografia está Santana Lopes apertando a mão ao homem mais poderoso do mundo; ao centro, abraçado a Bush, em atitude de rasteira subserviência, está o Presidente da Guatemala; e à esquerda, está Bush, apertando a mão de Santana e com uma expressão que parece dizer: "Quem é este tipo?" E a legenda reza assim: "O Presidente Bush, com o Presidente da Guatemala, Oscar Berger ao centro, e uma pessoa não identificada à direita, ontem em Nova Iorque..."

Embora Santana Lopes não saia bem da fotografia e, particularmente, da legenda, a verdade é que, desta vez, não tem culpa alguma. A expressão na cara de Bush e a legenda da AP são ambas eloquentes demonstrações daquilo que mais assusta a Europa relativamente aos Estados Unidos e a esta Administração: a sua suma ignorância, a sua arrogante e displicente ignorância, sobre o mundo que os rodeia e o qual pretendem comandar e disciplinar de acordo com a sua doutrina universal.

Segundo uma curiosa sondagem divulgada há tempos, se o mundo inteiro pudesse votar nestas eleições americanas, Kerry ganharia a Bush com uma esmagadora margem de 80 contra 20 por cento - coisa jamais vista em alguma eleição americana. Os números da sondagem são particularmente impressionantes entre o eleitorado dos países tradicionalmente aliados dos Estados Unidos, como a Inglaterra, a Alemanha, a Itália e até Portugal. A sondagem deveria fazer meditar os americanos nas razões que ocasionam este geral desprezo do mundo pelo seu Presidente. Mas é certo que, se sequer se detiverem a pensar nela, a conclusão será exactamente a oposta: o reforço da popularidade interna de Bush, como desafio ao mundo que o despreza.

As razões profundas da popularidade de Bush são, de facto, um fenómeno de difícil explicação, mesmo que parte dela se justifique por um efeito de arrasto de uma vaga actual de conservadorismo na América. Mesmo assim, as razões que muito provavelmente levarão George W. Bush à reeleição em Novembro são de difícil entendimento para um europeu.

Bush sucedeu àquele que terá sido, em termos de política doméstica, pelo menos, o melhor Presidente que os americanos tiveram desde o pós-guerra. E desmantelou por completo a herança económica e social de Clinton: transformou o superávit das contas públicas em novo défice galopante, como o haviam feito o seu pai e Reagan, com isso desmentindo a tradicional acusação dos republicanos aos democratas de estes apenas saberem subir impostos e endividar a União. Bush baixou, de facto, os impostos, mas apenas para os ricos e para as grandes empresas, sob o argumento de que isso relançaria o investimento e o emprego - mas em quatro anos perdeu milhões de empregos que os anos Clinton haviam criado. Prosseguindo numa agenda política ditada pelos ícones do neoconservadorismo religioso que o inspiram, Bush desfez o sistema social de saúde montado por Clinton, cortou os subsídios de alimentação às crianças pobres das escolas desfavorecidas, tirou dinheiro à protecção ambiental para o gastar em armamento e, no seu círculo de politólogos iluminados, já se discute até a possibilidade de terminar com o princípio da progressividade fiscal, para o substituir pelo princípio da proporcionalidade (ou seja, a mesma taxa de IRS para quem ganhe mil dólares e para quem ganhe um milhão) - um retrocesso civilizacional de um século.

Segundo as explicações mais comuns, a popularidade de Bush sustenta-se, apesar da desastrosa governação, no trauma pós-11 de Setembro e na ideia que o americano comum criou de que Bush é quem está melhor colocado para evitar novo ataque terrorista em território americano. Mas o que é curioso é que essa convicção é alicerçada em puro preconceito ideológico, que os factos não suportam: sabe-se hoje que o Governo de Bush subestimou e negligenciou as informações de segurança que apontavam para a iminência do 11 de Setembro; conhece-se a reacção patética de Bush quando teve conhecimento do ataque a Nova Iorque, documentada no filme de Michael Moore; e permanecem por explicar as cinco horas subsequentes, em que Bush esteve desaparecido, presumindo-se que andou às voltas no céu, a bordo do "Air Force One", até ter a certeza de que o ataque tinha terminado. Perante este panorama, é difícil de entender que garantias pode dar este Presidente de conseguir prevenir novo ataque terrorista ou de saber reagir a ele.

Nestes quatro anos de mandato, Bush tem uma única e recente vitória na sua política externa, que foi a realização de eleições no Afeganistão. A passagem da Líbia do campo terrorista para o campo "civilizado", apontado por Rumsfeld como outra vitória desta Administração, deve-se, de facto, aos esforços diplomáticos dos ingleses, e não dos americanos. Quanto ao resto, foi um desastre.

A aventura iraquiana foi um total descalabro, cujas consequências vale a pena lembrar:

- Dividiu o campo europeu entre os seguidores acríticos dos Estados Unidos e os outros, quebrando a unidade europeia, a dos Aliados e a da NATO;

- Desautorizou e descredibilizou as Nações Unidas, com consequências que já são visíveis na questão de Darfur, onde a organização revela a impotência a que ficou reduzida, depois de os Estados Unidos a terem remetido a um papel de avalista das decisões de política externa do Departamento de Estado;

- Em nome do desarmamento, invadiu-se um país desarmado - o Iraque - e deixou-se de lado os que verdadeiramente se estavam e estão a armar - a Coreia do Norte e o Irão;

- E, tendo invadido o país errado sob falsos pretextos e falsas provas, perdeu-se o crédito junto da opinião pública para futuras e necessárias missões de segurança internacionais (depois da mentira do Iraque, quem vai acreditar na verdade?);

- Sob o pretexto de combater o terrorismo da Al-Qaeda, que não existia no Iraque, transformou-se o país, mesmo sob a ocupação dos "marines", num campo de recrutamento e actividade florescente de todo o terrorismo, não apenas da Al-Qaeda, mas de várias outras organizações, que entretanto ali nasceram e prosperam, com a justificação da ocupação;

- Não se democratizou o Iraque, porque não havia com quem e porque os iraquianos não aceitaram nova ordem constitucional ditada pelo ocupante;

- Não se trouxe, como prometido, a paz e o progresso ao Iraque, mas sim o terror diário, o caos, o colapso da economia e das instituições civis e a inviabilidade económica e adiministrativa do país;

- Sacrificaram-se mais de mil vidas de soldados americanos, não na conquista do Iraque, mas na sua ocupação, e deitaram-se fora biliões de dólares dos contribuintes americanos e seus aliados, numa solução político-militar de que ninguém adivinha o fim;

- Desviadas as atenções para o Iraque, deixou-se Israel em roda livre, para impor a sua solução para a Palestina, como, quando e até onde quiser;

- E, enfim, dos 28 dólares por barril de petróleo que o mercado pagava antes da invasão do Iraque, saltou-se agora para os 50 dólares por barril - um preço que compromete toda a retoma económica mundial, que estava a iniciar-se quando Bush tomou posse. Pior era impossível.

Bem podem Bush e Rumsfeld gabar-se de que, em contrapartida, Saddam Hussein foi derrubado e está agora numa prisão. Será que essa única boa notícia vale todo o preço já pago e a pagar? Quem pode garantir que não haverá um novo ataque terrorista nos Estados Unidos, ou em Espanha, ou na Inglaterra? Quantos países árabes se sentem tentados a seguir o exemplo do Iraque, democratizado e pacificado, como Bush prometeu?