Deus salve a América?
Q&A Caetano Veloso/músico
João Miguel Tavares / Diario de Noticias
Nunca deve ter havido um tempo em que tantos criticam com tanta veemência os Estados Unidos, e foi nesta época que o Caetano lançou um disco que, para todos os efeitos, é uma homenagem à cultura americana. A Foreign Sound pode ser entendido também como um gesto político?
Nunca pensei nesses termos. A Foreign Sound é um projecto antigo, que foi sendo sucessivamente adiado e que eu fiz com bastante atraso na minha vida. O seu lançamento coincidiu com esta configuração política mundial, com todos esses ânimos anti-americanos, e naturalmente eu pensei nesse assunto. E ao invés de me desinteressar, isso aumentou a minha animação, porque aos meus olhos dava uma cara mais complexa ao trabalho.
Quando fala de «complexidade» isso significa que não se identifica com a onda anti-americana que varre o mundo?
Naturalmente que não. É muito difícil identificar-me com ondas assim, gerais. Acho um pouco simplista esse anti-americanismo, mesmo que entenda - e em muitos aspectos participe - da reacção contra a orientação política que os Estados Unidos têm seguido. O grupo que subiu ao poder nas últimas eleições é um grupo com o qual me sinto muito desidentificado, assim como muitos americanos, e a maioria dos não- -americanos. Agora, eu não faço disso uma generalização de atitude contra os Estados Unidos. E, de todo o modo, esse problema de poder político e internacional, com determinados povos a imporem o seu poder sobre outros, é um problema humano desde sempre.
Não lhe parece, então, que estejamos a viver uma época especialmente gravosa? Recordo-lhe que ainda recentemente escritores como Isabel Allende e Carlos Fuentes, ou actores como Gael García Bernal, tomaram posições muito críticas contra a possível reeleição de Bush, considerando-a «um perigo para a humanidade».
Eu acho que as pessoas não se devem furtar de tomar atitudes e de lutar por causas que consideram justas somente porque reconhecem que a história humana sempre teve de conviver com essas questões. As atitudes de luta são necessárias e louváveis. Não sei se assinaria um documento nesses termos, mas estou absolutamente seguro de que a presidência dos Estados Unidos diz respeito aos cidadãos do mundo todo, e se houvesse uma votação mundial, Bush seria derrotado fragorosamente. Ele talvez ganhe, mas somente por causa dos americanos (risos).
Não tem dúvidas disso...
Não tenho a menor dúvida disso. Por outro lado, eu lembro-me de um episódio que vivi com Gael García Bernal no ano passado, quando cantei na cerimónia dos Óscares. Nessa noite conversei muito com Gael, ficámos amigos, e depois da cerimónia fomos para uma festa da Miramax, onde estava um cantor a interpretar standards. No final, ele levantou-se, tocou piano de pé e cantou God Bless America. O Gael retirou-se imediatamente da sala. Eu fiquei até ao fim, e como todos ficaram de pé, eu também fiquei de pé. Porque eu adoro essa música, conheço-a desde pequeno. No Brasil havia uma versão em português, Deus Salve a América, que o meu pai me ensinou, porque era uma canção que tinha a ver com a guerra, com a democracia e os aliados. Quando cresci, fiquei a saber que essa música tinha sido composta por Irving Berlin, que é um santo, um compositor deslumbrante. Na hora do God Bless America eu pensava em tudo isso: «Não me vou levantar e virar as costas a uma música que me foi ensinada pelo meu pai e feita pelo Irving Berlin» (risos). Então, o Gael saiu mas eu fiquei.
A ideia de gravar temas anglo-saxónicos nasceu ainda o Caetano estava em Londres, no início dos anos 70.
Sim, nessa altura já falava em gravar os standards que cantava em casa: Cole Porter, George Gershwin. Eu sou esperto, não é? Eu fiz este disco sabendo que ele não iria ter essa força de actualidade, porque está ligado a um negócio antigo, a lembranças minhas. Podia ter escolhido um reportório que fizesse dele uma coisa mais pertinente, e que teria uma repercussão mais simpática no mundo americano. Não que A Foreign Sound tenha despertado antipatias. Simplesmente, ele não teve um caminho de sucesso. Eu podia ter surpreendido e me desvinculado desse tom que parece nostálgico, apesar de ter Nirvana, Stevie Wonder ou DNA, e de ter tantos comentários paralelos, tanta ironia, pelo facto de o Feelings ser uma música brasileira ou o Carioca ser uma música bem falsa sobre o Brasil. Com um tom mais brasileiro-experimental teria tido bastante mais êxito.
O que é que os americanos lhe disseram do A Foreign Sound?
O disco foi recebido com respeito, com carinho e sem muito entusiasmo. Por causa de tudo o que já referi. Eles reconheceram a ironia e a liberdade de pôr lado a lado Gershwin e Kurt Cobain, de misturar Diana, de Paul Anka, com So In Love, de Cole Porter, mas, ao mesmo tempo, essa liberdade desnorteia-os, é um pouco difícil ser compreendida por eles, porque não encontram qualquer nicho comercial onde colocar o disco.
Estou a achá-lo muito compreensivo. O Caetano costuma ficar bastante mais irritado quando os seus trabalhos são menos bem acolhidos do que espera.
Aquilo que estou a descrever aqui são coisas que entendo e que já esperava. Eu sou um sujeito super-razoável e sabia o que estava a fazer. Trabalho há quase 40 anos em música popular e já engoli milhões de sapos de todo o tamanho. Fico na minha, tranquilo, aguento muito. Só que há coisas que parece que atingem algum lugar que me é essencial e que eu não posso deixar passar. Aí respondo com veemência. Depende muito. Por exemplo, você está a entrevistar-me e mostrou-se muito receptivo em relação à minha complexidade na visão do papel dos Estados Unidos no mundo de hoje. Mas já houve alguns outros jornalistas que parecem querer pressionar-me para que tome uma atitude óbvia e anti-americana - e aí eu fico danado. Não sou obrigado a tomar atitudes! No outro dia disse para um deles: «Sabe o que é que eu acho? Acho que os americanos são os benfeitores da humanidade.»
Apenas como provocação ou sente que há uma verdade nisso?
Claro que há uma verdade nisso. Se não, não diria. Esse é um dos aspectos de toda essa história que ninguém quer engolir. Mas que é verdade. Não é culpa dos Estados Unidos que eles se tenham tornado, com o jeito que tiveram de organizar a sua sociedade e a sua história, naquilo que são, e que o Peru, o México ou o Brasil não tenham. E acho horrível que algum argentino ou chileno diga que a culpa das suas limitações actuais é americana.
Está a dizer que os Estados Unidos, de alguma forma, também se transformaram no bode expiatório da humanidade.
É. Tanto mais que os Estados Unidos não são uma identidade: são uma porção de coisas. É a língua inglesa, é a originalidade da sua colonização, é a revolução. A revolução americana foi maravilhosa, talvez a mais bela revolução de que tivemos notícias, porque não houve terror depois, não foi como a revolução francesa, embora tivesse identificações muito grandes. E foram os americanos que formularam aquele princípio, que é uma beleza, de que todo o homem tem direito a buscar a sua felicidade. Uma revolução que começa assim, um país que se põe nesses termos, merece atenção, respeito e paciência.
E a música americana? É a melhor do mundo?
Quantitativamente, os americanos construíram o mais rico acervo de canções e estilos, cantores e instrumentistas, do jazz às canções da Broadway, dos blues à folk, da country ao rock’n’roll. É muita coisa e muita gente muito boa. Aquelas igrejas onde as pessoas cantam criou um hábito de afinação. É uma música muito desenvolvida, tanto mais que a chamada música popular tem tudo a ver com o estilo da sociedade americana.
Estava à espera que me dissesse que a melhor música do mundo é a brasileira.
Eu estou a falar em termos quantitativos, que você pode medir. Mas a música é um negócio misterioso: a riqueza não determina tudo. Às vezes um país é rico mas não é criativo. Por exemplo, a comida dos Estados Unidos não é boa. A música tem outros valores espirituais, e às vezes um acervo menor, mas interessante, pode chegar a elevações espirituais maiores. E a música brasileira é divina. Uma das mais belas da música popular do século XX. No hemisfério americano só pode ser comparada à dos Estados Unidos e à de Cuba.
Quando é que podemos esperar por um próximo disco de inéditos seu?
Para o ano que vem. Estou com várias ideias, vamos ver o que dá.
João Miguel Tavares / Diario de Noticias
Nunca deve ter havido um tempo em que tantos criticam com tanta veemência os Estados Unidos, e foi nesta época que o Caetano lançou um disco que, para todos os efeitos, é uma homenagem à cultura americana. A Foreign Sound pode ser entendido também como um gesto político?
Nunca pensei nesses termos. A Foreign Sound é um projecto antigo, que foi sendo sucessivamente adiado e que eu fiz com bastante atraso na minha vida. O seu lançamento coincidiu com esta configuração política mundial, com todos esses ânimos anti-americanos, e naturalmente eu pensei nesse assunto. E ao invés de me desinteressar, isso aumentou a minha animação, porque aos meus olhos dava uma cara mais complexa ao trabalho.
Quando fala de «complexidade» isso significa que não se identifica com a onda anti-americana que varre o mundo?
Naturalmente que não. É muito difícil identificar-me com ondas assim, gerais. Acho um pouco simplista esse anti-americanismo, mesmo que entenda - e em muitos aspectos participe - da reacção contra a orientação política que os Estados Unidos têm seguido. O grupo que subiu ao poder nas últimas eleições é um grupo com o qual me sinto muito desidentificado, assim como muitos americanos, e a maioria dos não- -americanos. Agora, eu não faço disso uma generalização de atitude contra os Estados Unidos. E, de todo o modo, esse problema de poder político e internacional, com determinados povos a imporem o seu poder sobre outros, é um problema humano desde sempre.
Não lhe parece, então, que estejamos a viver uma época especialmente gravosa? Recordo-lhe que ainda recentemente escritores como Isabel Allende e Carlos Fuentes, ou actores como Gael García Bernal, tomaram posições muito críticas contra a possível reeleição de Bush, considerando-a «um perigo para a humanidade».
Eu acho que as pessoas não se devem furtar de tomar atitudes e de lutar por causas que consideram justas somente porque reconhecem que a história humana sempre teve de conviver com essas questões. As atitudes de luta são necessárias e louváveis. Não sei se assinaria um documento nesses termos, mas estou absolutamente seguro de que a presidência dos Estados Unidos diz respeito aos cidadãos do mundo todo, e se houvesse uma votação mundial, Bush seria derrotado fragorosamente. Ele talvez ganhe, mas somente por causa dos americanos (risos).
Não tem dúvidas disso...
Não tenho a menor dúvida disso. Por outro lado, eu lembro-me de um episódio que vivi com Gael García Bernal no ano passado, quando cantei na cerimónia dos Óscares. Nessa noite conversei muito com Gael, ficámos amigos, e depois da cerimónia fomos para uma festa da Miramax, onde estava um cantor a interpretar standards. No final, ele levantou-se, tocou piano de pé e cantou God Bless America. O Gael retirou-se imediatamente da sala. Eu fiquei até ao fim, e como todos ficaram de pé, eu também fiquei de pé. Porque eu adoro essa música, conheço-a desde pequeno. No Brasil havia uma versão em português, Deus Salve a América, que o meu pai me ensinou, porque era uma canção que tinha a ver com a guerra, com a democracia e os aliados. Quando cresci, fiquei a saber que essa música tinha sido composta por Irving Berlin, que é um santo, um compositor deslumbrante. Na hora do God Bless America eu pensava em tudo isso: «Não me vou levantar e virar as costas a uma música que me foi ensinada pelo meu pai e feita pelo Irving Berlin» (risos). Então, o Gael saiu mas eu fiquei.
A ideia de gravar temas anglo-saxónicos nasceu ainda o Caetano estava em Londres, no início dos anos 70.
Sim, nessa altura já falava em gravar os standards que cantava em casa: Cole Porter, George Gershwin. Eu sou esperto, não é? Eu fiz este disco sabendo que ele não iria ter essa força de actualidade, porque está ligado a um negócio antigo, a lembranças minhas. Podia ter escolhido um reportório que fizesse dele uma coisa mais pertinente, e que teria uma repercussão mais simpática no mundo americano. Não que A Foreign Sound tenha despertado antipatias. Simplesmente, ele não teve um caminho de sucesso. Eu podia ter surpreendido e me desvinculado desse tom que parece nostálgico, apesar de ter Nirvana, Stevie Wonder ou DNA, e de ter tantos comentários paralelos, tanta ironia, pelo facto de o Feelings ser uma música brasileira ou o Carioca ser uma música bem falsa sobre o Brasil. Com um tom mais brasileiro-experimental teria tido bastante mais êxito.
O que é que os americanos lhe disseram do A Foreign Sound?
O disco foi recebido com respeito, com carinho e sem muito entusiasmo. Por causa de tudo o que já referi. Eles reconheceram a ironia e a liberdade de pôr lado a lado Gershwin e Kurt Cobain, de misturar Diana, de Paul Anka, com So In Love, de Cole Porter, mas, ao mesmo tempo, essa liberdade desnorteia-os, é um pouco difícil ser compreendida por eles, porque não encontram qualquer nicho comercial onde colocar o disco.
Estou a achá-lo muito compreensivo. O Caetano costuma ficar bastante mais irritado quando os seus trabalhos são menos bem acolhidos do que espera.
Aquilo que estou a descrever aqui são coisas que entendo e que já esperava. Eu sou um sujeito super-razoável e sabia o que estava a fazer. Trabalho há quase 40 anos em música popular e já engoli milhões de sapos de todo o tamanho. Fico na minha, tranquilo, aguento muito. Só que há coisas que parece que atingem algum lugar que me é essencial e que eu não posso deixar passar. Aí respondo com veemência. Depende muito. Por exemplo, você está a entrevistar-me e mostrou-se muito receptivo em relação à minha complexidade na visão do papel dos Estados Unidos no mundo de hoje. Mas já houve alguns outros jornalistas que parecem querer pressionar-me para que tome uma atitude óbvia e anti-americana - e aí eu fico danado. Não sou obrigado a tomar atitudes! No outro dia disse para um deles: «Sabe o que é que eu acho? Acho que os americanos são os benfeitores da humanidade.»
Apenas como provocação ou sente que há uma verdade nisso?
Claro que há uma verdade nisso. Se não, não diria. Esse é um dos aspectos de toda essa história que ninguém quer engolir. Mas que é verdade. Não é culpa dos Estados Unidos que eles se tenham tornado, com o jeito que tiveram de organizar a sua sociedade e a sua história, naquilo que são, e que o Peru, o México ou o Brasil não tenham. E acho horrível que algum argentino ou chileno diga que a culpa das suas limitações actuais é americana.
Está a dizer que os Estados Unidos, de alguma forma, também se transformaram no bode expiatório da humanidade.
É. Tanto mais que os Estados Unidos não são uma identidade: são uma porção de coisas. É a língua inglesa, é a originalidade da sua colonização, é a revolução. A revolução americana foi maravilhosa, talvez a mais bela revolução de que tivemos notícias, porque não houve terror depois, não foi como a revolução francesa, embora tivesse identificações muito grandes. E foram os americanos que formularam aquele princípio, que é uma beleza, de que todo o homem tem direito a buscar a sua felicidade. Uma revolução que começa assim, um país que se põe nesses termos, merece atenção, respeito e paciência.
E a música americana? É a melhor do mundo?
Quantitativamente, os americanos construíram o mais rico acervo de canções e estilos, cantores e instrumentistas, do jazz às canções da Broadway, dos blues à folk, da country ao rock’n’roll. É muita coisa e muita gente muito boa. Aquelas igrejas onde as pessoas cantam criou um hábito de afinação. É uma música muito desenvolvida, tanto mais que a chamada música popular tem tudo a ver com o estilo da sociedade americana.
Estava à espera que me dissesse que a melhor música do mundo é a brasileira.
Eu estou a falar em termos quantitativos, que você pode medir. Mas a música é um negócio misterioso: a riqueza não determina tudo. Às vezes um país é rico mas não é criativo. Por exemplo, a comida dos Estados Unidos não é boa. A música tem outros valores espirituais, e às vezes um acervo menor, mas interessante, pode chegar a elevações espirituais maiores. E a música brasileira é divina. Uma das mais belas da música popular do século XX. No hemisfério americano só pode ser comparada à dos Estados Unidos e à de Cuba.
Quando é que podemos esperar por um próximo disco de inéditos seu?
Para o ano que vem. Estou com várias ideias, vamos ver o que dá.
<< Home