outubro 23, 2004

A Estratégia da Aranha



Por Miguel Sousa Tavares

O episódio da sesta do primeiro-ministro não é um "fait-divers" ridículo, mas sim um revelador eloquente do estilo de fazer política de Santana Lopes, onde a aparência é tudo e a essência dispensável. Foi assim que ele governou Lisboa, é assim que ele se propõe governar o país. Aparentemente, é apenas ridículo que o gabinete do primeiro-ministro divulgue uma nota oficiosa para desmentir que ele, ao contrário do que noticiou o "Expresso", não fez uma sesta em S. Bento entre o debate parlamentar de quinta-feira passada e a sua presença na Moda Lisboa. Ridículo, porque ninguém, cá fora, pode evidentemente saber se o primeiro-ministro dormiu ou não dormiu uma sesta - o que torna o desmentido totalmente inóquo; ridículo, sobretudo, porque ninguém se interessa com o assunto ou lhe dá o significado e a importância política que o próprio Santana Lopes lhe deu.

E se Santana Lopes deu tanta importância a que o país ficasse a saber que ele não tinha dormido uma sesta é apenas porque não ignora que o país que lê o "Expresso" conhece de há muito a sua fama de trabalhar pouco e preparar mal os assuntos. Sá Carneiro, o primeiro-ministro cuja figura Santana Lopes gosta de invocar a propósito e a despropósito, teve sempre o grande mérito de não ligar à imagem que as pessoas faziam dele, mas sim à avaliação que faziam do seu trabalho: de todos os primeiros-ministros que acompanhei, enquanto jornalista, foi de longe aquele que menos se preocupou em governar com e para os "media" ou para a construção de uma imagem pessoal. O seu autodesignado discípulo é o oposto: a sua obsessão com a imagem e a propaganda está na razão inversa da sua preocupação e da sua competência com a governação. Em Lisboa, deixou a câmara arruinada, sem ter uma única obra que possa dizer sua, mas, em contrapartida, multiplicou por cinco as verbas reservadas a publicidade, gastas em coisas ridículas como aqueles célebres cartazes da série "Já reparou que...?" No Governo do país, prepara-se para avançar com a tal Central de Propaganda, confiada a Morais Sarmento, e cujo custo anunciado é de dois milhões de euros. Entre os assessores de imprensa e de imagem ao serviço da tal central, ao serviço do primeiro-ministro e ao serviço dos vários ministros, é provável que se chegue à centena de pessoas contratadas unicamente para propagandear a acção do Governo - ou seja, para desinformar os cidadãos.

Esta fixação na importância da propaganda e no tratamento da própria imagem - que caracteriza todo o percurso político de Santana Lopes - não implica, necessariamente, que ele seja por igual um inimigo da liberdade de imprensa. Honestamente, não creio que Santana Lopes gostasse de viver num regime como o do seu amigo Jardim, na Madeira, onde as condições de igualdade do debate político e de isenção da imprensa são objectivamente impossíveis. Santana Lopes é, por essência, um orador e um debatente, a quem a ausência de adversário conduz fatalmente à ausência de brilho, por falta de ideias próprias - como bem se viu nos tempos, ainda recentes, em que ele era um comentador solitário da SIC, se sem o tal "contraditório", que agora reclama e que então se esqueceu de reclamar.

Só que uma coisa é estar na oposição, ou mais ou menos na oposição, e outra é estar no poder. E se o poder é perigoso e cega a todos, é especialmente perigoso para pessoas como Santana Lopes, que vivem da construção de uma imagem e de uma ficção. No poder, a sua fatal tendência é deixar de ver a imprensa - que sempre lhe deu asas para voar e para a construção do mito - como o adversário em relação ao qual ele sente a necessidade de ser oposição. Cá fora, a liberdade de imprensa foi-lhe sempre essencial; lá dentro, sente-a como uma ameaça, um adversário a combater. Por necessidade e por vaidade.

Daí até à tentação de acrescentar à propaganda própria o silenciamento das vozes incómodas vai um passo, não tão pequeno quanto ele próprio se dará conta. E vários pequenos passos na direcção do grande passo têm vindo a ser dados por este Governo. São os discursos coincidentes contra os não-alinhados do PSD-Porto, do dr. Jardim e do infeliz e desnudado ministro Rui Gomes da Silva, verdadeira "voz do dono" de todos os tempos e situações; foi o "take-over" sobre a Lusomundo, implicando, de um só golpe, o controlo editorial do "Diário de Notícias", "Jornal de Notícias", "24 Horas", TSF e "Grande Reportagem", entre outros; foi o controlo da Lusa, a única agência de notícias nacional; foi o episódio do afastamento de Marcelo da TVI ("saída", corrigiu a Lusa...); foram as manobras ensaiadas para diversas decapitações de chefias na imprensa, travadas momentaneamente pelo escândalo do caso Marcelo; foram as reveladoras declarações do ministro Morais Sarmento, reclamando o controlo da RTP em nome do "poder que vai a votos".

Tudo coincide e não há que ter ilusões. O processo está em curso, a intimidação e o medo estão instalados e o objectivo claro é garantir a reeleição deste Governo, não pelos seus méritos, mas pela propaganda maciça, e com menos "contraditório" quanto possível dos seus supostos ou reais méritos. É a "italianização" da vida política portuguesa, umas vezes feita subtilmente, outras vezes com a falta de jeito que caracteriza os ministros Gomes da Silva ou Morais Sarmento. A teia vai-se tecendo e não dispensa coisas tão rasteiras como o suborno de jornalistas e de chefias, os "avisos de amigos" ou as soluções finais de silenciamento e afastamento, quando nada mais resulta. Acreditem: sei do que falo, conheço esta gente e os seus métodos, sei o que os move e aquilo de que são capazes.

P.S. - Uma das coisas que caracterizam as pessoas sem coragem é estarem sempre prontas para exigir aos outros o triplo da coragem de que eles não dão mostras. É o caso do lastimável jornalista António Ribeiro Ferreira, do "Diário de Notícias". A propósito da minha situação na TVI (que só a mim me diz respeito), escreveu ele isto: "Miguel Sousa Tavares tem a certeza de que Marcelo Rebelo de Sousa saiu da TVI por pressão do Governo. Mesmo assim continua comentador. Que saudades de Francisco Sousa Tavares."

Passo por cima da clássica tentativa de ofensa familiar, bem característica, por exemplo, dos antigos métodos da Pide, apenas dizendo, sobre isso, que conheci bem o meu pai e sei que, perante as pressões políticas, a sua atitude foi sempre, e seria agora, a de resistir e não a de desistir, baixando os braços e entregando a cena aos Ribeiros Ferreira, sempre prontos a servir. Tal como disse na TVI, não tenho dúvidas - e essa foi uma das razões para continuar - de que muitos como ele, e o próprio Governo, adorariam que também eu me calasse. Mas - coisa que não é muito comum nos tempos que correm - toda a redacção da TVI, o seu director-geral e eu próprio denunciámos no ecrã da própria estação o acto objectivo de saneamento político de Marcelo Rebelo de Sousa e a vontade de resistir e de não entregar de mão beijada ao Governo os célebres "conteúdos", que somos nós próprios. Entendi que a minha obrigação era ser solidário com os que fazem a TVI e não a de fazer a vontade aos que a querem controlar de fora. Infelizmente, não vi nenhum jornalista do "Diário de Notícias", e designadamente António Ribeiro Ferreira, ousar sequer um suspiro público de protesto quando o administrador da empresa proprietária do jornal, Henrique Granadeiro, foi convenientemente substituído pelo mais adequado Luís Delgado. É próprio dos que calam e consentem exigir aos outros tudo aquilo de que não são capazes e nunca ficarem satisfeitos. Como se assim pudessem ser desculpados.